Diário dos Açores

Romarias quaresmais

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Conselhos de médico

1 – Para além do principal aspeto religioso e espiritual das Romarias Quaresmais características da ilha de S. Miguel, inseridas na nossa cultura ancestral e já a comemorar os seus 500 anos, estas romarias implicam um esforço físico grande que importa enquadrar.
2 – No seu percurso à volta da ilha de S. Miguel os romeiros percorrem durante uma semana cerca de 280 a 300 quilómetros (mais ou menos30 a 40 km / dia).
3 - O esforço físico dos romeiros é de características aeróbias. Isto significa que a energia gasta é obtida através do consumo de oxigénio. O nosso organismo tem a capacidade de armazenar energia através de 3 sistemas energéticos. O sistema ATP- PC que é a energia dos esforços explosivos (salto, sprint, atirar uma pedra, etc.) que não é utilizado pelos romeiros, a não ser que chova torrencialmente e eles tenham que correr para se abrigar. O “supercarborante” é o glucogénio que se acumula no fígado e nos músculos. Um romeiro bem treinado é aquele tem uma grande quantidade deste “combustível” que se vai gastando ao longo da caminhada do dia. A outra reserva de energia é a gordura, mesmo quem é magro tem uma quantidade de energia armazenada sob esta forma que daria para dar a volta ao mundo se não fossem as outras condicionantes.
4 – A ”reserva” de energia do glucogénio pode ser aumentada através do treino de “resistência” nos meses anteriores à romaria. Como esta energia se gasta durante o dia é muito importante uma refeição rica em hidratos de carbono, em especial a ceia. Hidratos de carbono complexos como batatas, arroz, pão e massas, não esquecendo as frutas e se possível doces e compotas a acompanhar. Esta refeição deverá ser feita no máximo até uma hora após a chegada à igreja onde vão ser “recolhidos”, caso contrário o tempo de recuperação será mais prolongado. Para aumentar as reservas de glucogénio os romeiros deverão ingerir uma alta quantidade de hidratos de carbono nos três dias que antecedem a sua caminhada.
5 – O esforço físico consome energia e liberta calor. Como na ilha de S. Miguel a humidade está sempre muito elevada a nossa transpiração aumenta muito. Com isso perdemos muitos líquidos através do suor, que no caso dos romeiros ainda é pior em virtude do “traje tradicional” com o xaile e o lenço a dificultarem ainda mais a evaporação do suor, que é o que faz baixar a temperatura corporal. Com a perda do suor também perdemos sais minerais, principalmente sal (por isso o suor é salgado). Recomenda-se a ingestão de muita água ao longo de todo o percurso, em pequenas quantidades de cada vez, bebendo mesmo antes de se sentir sede, porque quando o nosso cérebro “nos diz” que temos sede é porque já estamos desidratados e isso pode colocar a nossa vida em risco.As refeições deverão conter um pouco de mais sal do que o recomendado para uma dieta saudável.
6 – Por vezes surgem cãibras nas pernas, em especial para os últimos dias da romaria. A perda de magnésio e potássio na urina e no suor e a desidratação são as causas habituais. Mais uma vez a ingestão de água é importante.Não esquecer de comer todos os dias uma ou duas bananas, que isso poderá ajudar a prevenir as cãibras.
7 – Quase que seria desnecessário referir que o calçado deverá ser confortável, bem ajustado e próprio para caminhadas, com boa aderência ao piso, não esquecendo a capacidade de absorção do impacto do calcanhar no solo. É claro que este calçado não deve ser novo em folha e já deverá estar adaptado ao pé para não provocar bolhas ou feridas que podem causar um grande desconforto. No caso do aparecimento de zonas de ficção deverá ser colocado um penso ou adesivo local antes de ter ferida. Se aparecerem bolhas, estas deverão ser furadas com uma agulha desinfetada para “drenar” o líquido. Não se deve tirar a pele.
8 – Em virtude da exposição solar da cara, o uso de protetor solar com fator 50 é recomendado. A sua aplicação deverá ser efetuada várias vezes por dia, não esquecendo as orelhas. O cancro da pele pode ser muito perigoso e até mortal.
9 – Para quem tem varizes nos membros inferiores o uso de meias elásticas, abaixo dos joelhos, pode ser uma grande ajuda, pois evita aquele “inchaço” dos tornozelos e pés que muitas vezes atormenta os nossos romeiros. Dormir com os pés da cama ligeiramente elevados (uns “tacos” de cerca de 5 a 10 cm) pode ser muito útil para ajudar à drenagem dos líquidos que se vão acumulando nas pernas durante o dia e ao longo da semana.
10 - No caso do romeiro ter alguma patologia crónica, deverá manter a sua medicação habitual. Se aparecerem dores musculares ou articulares a aplicação local, com massagem, de uma pomada, creme ou loção anti-inflamatória pode ser uma grande ajuda. A toma de analgésicos deverá ser reservada para os casos de queixas mais intensas.
NOTA 1 – No dia dos Açores fui à cerimónia de comemoração na Praça do Emigrante, na Ribeira Grande, onde apreciei a exposição de fotografias dos romeiros de S. Miguel da autoria do fotógrafo Laudalino da Ponte Pacheco (Laudalino “da Maia”). Emocionei-me ao ver as fotos do meu avô António Raposo, de tios e primos Raposos da Lomba da Maia.  Obrigado à Associação dos Emigrantes Açorianos.
NOTA 2 – Eu só fui “romeiro” por 5 km (na foto). Na Salga havia a tradição de ir esperar os romeiros na freguesia dos Fenais da Ajuda e com eles fazer o percurso de regresso a casa até à igreja de S. José da Salga, rezando, cantando e acompanhando o rancho nesta fase final do seu percurso. Era uma alegria vê-los chegar sãos, salvos e cansados mas felizes pelo cumprimento da sua devoção.

* Médico fisiatra
e especialista em Medicina Desportiva

António Raposo*

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