Diário dos Açores

Um espelho que se amplia

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Quando um crítico reúne seus textos esparsos e os publica em conjunto, é porque adquiriu suficiente consciência de seu trabalho e das linhas mestras de seu pensamento; é quando verifica, também, a evolução de seus conceitos, que, sem abandonar as linhas mestras, pode incluir variantes que não desfiguram sua trajetória intelectual.
Urbano Bettencourt nos oferece uma espécie de summa de seus périplos [às vezes no sentido literal] analíticos em Sala de Espelhos, que ora sai em segunda edição pela mesma Companhia das Ilhas. Esse título invoca as experiências da óptica e, inclusive, dos parques de diversões, com sua multiplicidade de reflexos mútuos que se abismam ao infinito. Em seu conjunto, os textos deste livro são também isso: a partir das literaturas insulares, vemos o quanto autores e obras se refletem, e, nesse acto, não apenas imitam, mas também trazem novos aportes, decorrentes da Geografia, da cultura, e intensamente, da individualidade de cada criador – e aí temos a novidade.
Desde a leitura do índice, percebemos o carácter panorâmico da coletânea, pois os escritores se sucedem numa progressão diacrônica de obras publicadas, começando por Florêncio Terra e terminando por João Pedro Porto, com algumas “incursões”, como diz Urbano Bettencourt, aos autores da Madeira, Canárias e Cabo Verde. Embora o crítico afaste a ideia da construção de uma história literária tout court, é possível acompanhar essa escolha metodológica como um inventário pessoal das literaturas dos séculos XX e XXI, lembrando os painéis bizantinos de mosaicos, que, vistos à distância, chamam à intelecção e ao prazer estético, ainda que, a olho próximo, revelem sua feitura compósita de inumeráveis peças autônomas.
E o que vemos, nesse painel? Antes de tudo, o desenho de uma unidade, isto é, as preocupações são as mesmas e se referem às circunstâncias de “ser ilhéu”, condição ontologicamente indeclinável, mas afetivamente aceita e propagada.
Não é meu desejo adentrar numa “alma única”, por ser isso quase impossível, mas talvez o sugestivo depoimento “Ser ilhéu - e salvar-se pelos livros” (p. 13) possa nos dar algumas pistas. Nessa peça vestibular, o autor conta-nos de início as agruras e a escassez de sua infância no Pico, o isolamento, as longas distâncias percorridas até o Faial – dado que a verdadeira medida da distância é o tempo que se leva a percorrê-la – nada muito diferente de seus contemporâneos de idade, mas com um resultado singularíssimo, que o levou aos livros e ao conhecimento em todas suas dimensões. Esse estágio foi sucedido pela experiência “pessoal” do Arquipélago; depois, do Continente, o português e outros; depois, de outras ilhas, nacionais ou espanholas. Formava-se o intelectual Urbano Bettencourt.
A vida é feita de delicadas analogias, desde que se as procurem; mas, não as encontrando, cabe inventá-las. Há, entretanto, uma candente e visibilíssima semelhança entre a autobiografia cultural de Urbano Bettencourt e o corpus investigativo por ele escolhido, que começa com a fundação do jornal O Açoriano [1883] e termina com a obra de João Pedro Porto, já em pleno século XXI. Não coincidência com os períodos históricos, por evidente, mas todo esse inventário de obras e autores apresenta um ângulo, como a representação iconográfica do crescendo da escrita musical: trata-se da abertura ao mundo e às novas configurações da cultura – tímidas no início e, agora, plenamente integradas à “modernidade” – passe o termo semântica e desconfiadamente plurívoco.  
Assim, na leitura pausada do livro, percebemos uma reflexão que evidencia dois estágios nítidos da produção insular: um, composto pelos escritores para quem os Açores eram uma questão a ser resolvida,  e outro, que reúne aqueles que já não têm nos Açores uma questão, mas que os entendem como um espaço de intimidade ancestral hábil à projeção para encontro de dimensões universais.  
Os temas trazidos a este livro demonstram o trânsito proposto por essas etapas histórico-culturais. Impossível, é claro, realizar uma expedição topográfica por todos  os autores, que são perto de cinquenta, mas, aqui acolhem-se alguns representativos desse movimento, e deliberadamente faço-o invertendo o esperável: começando pela geração atual.
Nessa exploração, coloco como marco inicial o João Pedro Porto do ensaio “Utopias e ruínas”. É interessante – e revelador – como o crítico prioriza o lado filosoficamente existencial e a intimidade profunda na obra do ficcionista, destacando-lhe as agruras internas das personagens. Já as ilhas são representadas como fantasias da mente [alegorias, melhor] e, assim, como entidades de existência pretendida, desejável e, por óbvio, distantes do real.
No que se refere a Joel Neto, a análise recai sobre o opulento Arquipélago que, ao nascer, já pôde ser considerado a summa do conhecimento das Ilhas. Com Joel Neto, a reflexão vai num caminho hermenêutico singular, pois, se situa essa obra dentro da viagem canônica que tem suas raízes em Nemésio, traz-nos outras perspectivas, quais sejam: a crítica e a metaforização do ambiente insular, com as que problematizam o próprio ser ilhéu, e o faz manobrando com eficiência a paródia e outros elementos discursivos.
Retrocedendo, mas ainda dentro da geração de autores “fisicamente” vivos, em que podem ser incluídos Álamo Oliveira, Carlos Tomé, Ivo Machado, Judite Jorge, o livro sob destaque é Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo, quase uma enciclopédia literária das representações do ilhéu, na perspectiva de personagens acentuadamente trágicas, mas ingênuas, e sem saber que são felizes no contexto de uma ilha que abandona teres e haveres, e começa a ter preocupações inesperadas. Urbano Bettencourt mostra-nos, nesse romance, três aglutinadores conflituais: a figura do pai, da casa e da dispersão. Sim, digo inesperadas porque com João de Melo, e, digo eu, com Martins Garcia e Álamo Oliveira, o ilhéu passou a agregar novas criações de sentido quase metafísico, mas certamente ontológico, que vêm romper com a constância da representação dos rituais, o que, algures, chamei de a estética da repetição. Aqui, tal como em Contrabando Original, o giro centrípeto foi substituído pelo centrífugo; não é preciso dizer que são temas que frequentam a nova geração de escritores, acima vista.
A Daniel de Sá, Urbano Bettencourt destina uma atenção prolongada, demorando-se na publicação Rememorando Daniel de Sá, que veio trazer novas luzes sobre o morador da Maia, celebrado em vida e após sua indesejada morte. Teríamos muito a dizer de Daniel de Sá, mas o que resulta da análise é o retrato de um autor completo, em que a preocupação regional se casa com universalidade, e na qual sua capacidade mimético-estilística representa seu modo de trazer para nós as gerações pregressas, inserindo-as no presente. Com Álamo Oliveira, temos também essa perspectiva do olhar extramuros, que encontra em Marta de Jesus - a verdadeira uma especulação de natureza metafísica, em que, como assinala Urbano, há o diálogo entre a conhecida passagem bíblica e a contemporaneidade do século XX, disso resultando melhor compreensão do que somos como seres humanos.
Dando grandes passos retrógrados no tempo, porque o espaço deste veículo mais não permite,  é preciso referir aos que se estrearam na primeira metade do século anterior e cultivavam, a par de uma alargada visão humanística, um acentuado desejo de representação da terra, e aí temos o incomparável Vitorino Nemésio, com seu Mau Tempo no Canal. Urbano assinala, no conjunto de sua obra, a preponderância da geografia como exercício definidor do caráter açoriano - a ilha como apartamento e distância. Já mais recente, encontra-se Natália Correia, mas ainda dentro desse espectro de criativa limitação insular, que Urbano denomina com muita felicidade, como território maternal, e isso diz tudo.
Chegando ao final de nossa viagem invertida, em que mais e mais se acentua o domínio da representação da terra, vemos o quanto Roberto de Mesquita, Florêncio Terra, Armando Côrtes-Rodrigues e mesmo o “estrangeiro” Raul Brandão foram capazes de sedimentar o insumo necessário ao surgimento das novas gerações de intelectuais, poetas e ficcionistas que têm demonstrado, ao mesmo tempo, que a terra-mãe é-lhes necessária, e o quanto o mundo está a exigir de uma palavra que sirva para que nos entendamos como participantes do agrupamento maior a que chamamos de Humanidade.
Aos Açores pode-se aplicar a famosa frase de Leon Tolstoi, Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia. Gaspar Frutuoso, ao falar sobre os teres e haveres micaelenses no século XVI, fazia-o sub specie aeternitatis, mas não pensemos que essa atitude apenas visava à desejada eternidade celestial, mas à universalidade tal como a entendia o homem renascentista. Fiquemos nas referências musicais: se ao homem Urbano o mundo abriu-se aos poucos e de modo incontornável, o mesmo aconteceu os autores estudados, na sua marcha de linhas seguras pelos postes. A “biografia” diacrônica do corpus mostra o quanto, na busca de uma universalidade ostensiva, os autores também alargaram o mundo de seus interesses e isso ocorreu sem o abandono de sua essencialidade de ilhéu – e teriam todo o “direito” de abandoná-la, pois ninguém impõe limites à literatura – sabendo que é algo colado à sua própria existência. Isso não significa um seguir ao pé da letra o dito de Tolstoi, mas, sim, ousadamente ampliá-lo para Se queres ser universal, seja-o, ainda que mantenhas a aldeia dentro de ti.
Sala de Espelhos, cuja segunda edição vem a corroborar o seu êxito junto ao público leitor, já surge como um clássico, fonte de leitura e referência para quem deseja entender não apenas o que é a literatura dos Açores, mas, também, o que pode ser uma alma única.

 *Doutor em Letras. Ficcionista. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil.

Luiz Antonio de Assis Brasil*

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