Diário dos Açores

Eduardo Bettencourt Pinto A pedra e o cinzel mais puro

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Palavra de Poesia

A Imprensa Nacional-Casa da Moeda tem agora mais uma colecção de poesia, intitulada “Colecção de Comunidades Portuguesas”. Trata-se de um empreendimento (de um investimento, direi melhor) que devemos saudar e ao qual a nossa atenção tem de dedicar o seu melhor. Iniciativa conjunta com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, esta colecção publicou em pouco tempo três, quatro vozes de primeira água. Mónica Vieira-Auer, Marcus Quiroga – sobre os quais escreverei a próxima recensão - e Eduardo Bettencourt Pinto são na poesia (porque nesta colecção se publicam também outros géneros, do romance ao romanceiro), nomes a reter.
Especialmente prodigiosa, a poesia de Eduardo Bettencourt Pinto constitui uma descoberta feliz. Pelas imagens, pelo rigor frásico, pela candura e poder de observação das coisas da natureza e da natureza humana, Bettencourt Pinto vem dizer-nos o óbvio: de facto, quando falamos de poesia portuguesa não podemos continuar a ignorar o que na diáspora se escreve. Direi mesmo que, para que esta colecção e outras iniciativas deste género tenham um franco reconhecimento e um alcance maior, se impõe um encontro, ou um congresso, talvez, dedicado à poesia lusófona. Sem preconceitos nem polémicas fúteis (saber se o termo ‘lusofonia’ tem ou não tem um eco pós-colonial – isso afasta-nos do essencial). Pensar e valorizar a expressão literária que em português se faz, é isso que está em causa. Assumindo, claro, a multímoda plasticidade da língua que é de Camões porque é de Drummond, de Craveirinha e de Luandino, porque é língua escrita em vários ‘português’. Ler e dar a ler estes poetas que, fora de Lisboa e do Porto e de outras zonas de influência, em muito contribuem para que a nossa poesia e língua permaneçam vivas num mundo cada vez mais pobremente anglófilo.
A poesia de Eduardo Bettencourt Pinto, num volume belíssimo, com prefácio iluminador de Onésimo Teotónio Almeida, nasce de terras angolanas. Angolano, de facto, o autor de Cântico Sobre uma Gota de Água, nasceu na Gabela, Sul de Angola, radicou-se no Zimbabwe, mas em 1976 foi para Ponta Delgada. Desde 1983 está radicado no Canadá. Não é a primeira vez que oiço falar deste poeta. Noutra ocasião, há anos, referi-o como sendo uma das vozes herdeiras da de Eugénio de Andrade. Este volume confirma essa minha impressão. Onésimo Teutónio tem a presciência de, no prefácio que assina, dar voz ao autor através da transcrição de emails trocados com Bettencourt Pinto, os quais, na verdade, dariam um belíssimo diário. Dessa leitura prefacial deduz-se uma ideia central: estamos na presença dum poeta exigente. Nas suas próprias palavras: “Escrevo. Labuto a pedra com o cinzel mais puro, o das essências da memória.» Essa imagem, a da pedra e a do cinzel, proximam esta voz, como disse já, da de Eugénio de Andrade, defensor dum ideal poético assente nesse ostinato rigore que Bettencourt Pinto faz também seu. Logo o poema de abertura, “Música” delineia (e delimita) os termos desta poética: “Entrega aos dedos/ o domínio da arte// Pega na guitarra/ - cada sílaba/ um acorde.// Escuta a música/ entre os dedos/ Um bolero é isso.” (p.49). Música, ritmo, versos curtos, um desenho estrófico a fazer lembrar certa poesia pura, como se no branco da página valesse mais o que dessa brancura irrompe – o poema cauto, medido – que a verborreia que, hoje, vemos aí em tanto texto que se diz poesia, isso caracteriza a estesia deste poeta.
De resto, a música parece ser um leitmotiv, a par do tema da amizade e do tema da escrita, que anima o caudal rítmico do volume. A música da poesia transforma em templo aquilo que foi pedra, lê-se. Mas num outro poema a guitarra faz ecoar um “mundo mais escuro/ junto ao coração”. Da lição eugeniana há mesmo um poema revelador, “As Palmeiras de Eugénio”, onde Eduardo figura o poeta de Mar de Setembro como alguém “curvado sobre os ramos/ das palavras”, numa intersecção imaginística que lembra, sem dúvida, a arte do cantor de “Green God”: as palavras são estorninhos, Eugénio ouve a voz da mãe, ou então o seu canto “confunde-se com a cal das paredes” (p.55). O sul é, assim, associado à luz da poesia, tornando-se mito, ou, noutro lugar, vinho. Poesia, sempre associada, na verdade, à natureza e ao nosso entendimento dela (“Uma palavra às vezes chega como um pássaro./ Voa em redor da mão e canta./ Ama-te mais e para sempre/ como a luz que arde no mar” (p.211), é a palavra, móbil da memória, outro tema primacial.
Poesia lábil, sensível, Eduardo Bettencourt Pinto como que reescreve toadas reconhecíveis: não só Eugénio, mas também Sophia (o mar, a ilha, certa nostalgia que reflecte o tempo e sua usura), e ainda António Ramos Rosa, seja no idealismo feminino, seja no motivo da casa. Em outros poemas, por exemplo os da secção “A Cor Sul dos Teus Olhos” (as secções apontam para volumes já publicados, restaurando título e poemas), Knopfli é convocado em epígrafe, como em epígrafe é convocado Philip James Bailey, convidando o leitor à compreensão das razões de uma poesia que se move entre o lirismo mais intimista e a contemplação do mundo circundante. Esse gesto citacional dá-nos a chave com que penetrar noutros poemas mais descritivos, mais longos, próximos da arte de testemunho que lemos no autor de Monhé das Cobras, e onde Sena é muitas vezes o subtexto. Bettencourt Pinto é um poeta culto, não ignorando o diálogo com esses subtextos.
Porém, discreto mesmo quando cultiva o poema longo (os 50 poemas numerados de “Menina da Água – cantanta em B Menor – Nordeste, S. Miguel, Açores” é, no limite, um longo poema, extremamente bem construído em torno do símbolo da ilha e onde se deixa a tese desta poesia auto-analítica: o tempo ressoa/ nas diurnas sementes da terra) o autor de Cântigo Sobre uma Gota de Água fá-lo de maneira a não trair o ideal de poesia ancorada em relâmpagos, em imagens naturalistas. Qualquer coisa de António Osório perpassa na voz de Bettencourt Pinto, especialmente a observação dos seres mais humildes (“Os caninos, é certo, têm a pureza/ do que é leve e respirável, e uma nobreza/ tão humilde”)e do mundo evanescente. Mas na visão intensa e cândida do poeta angolano-açoriano há uma dimensão outra que o torna independente em relação aos mais diversos mestres: a pessoalíssima capacidade de, metaforicamente, chegar a sínteses belíssimas: “As marcas da sombra/ [...]/ uma mão cheia de vento sobre o teu ombro/ e o cão do crepúsculo a correr adiante de nós” (p.225).

 

António Carlos Cortez *

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