Diário dos Açores

Os Açores na filosofia e na cultura

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A Universidade dos Açores foi fundada em 9 de janeiro de 1976. Nessa altura, do seu corpo docente apenas dois nomes me eram familiares: José Enes, que conhecera pessoalmente na Praia da Vitória quando, a convite do Padre Cândido Botelho Falcão, ia pregar à Matriz, e Gustavo de Fraga, da Universidade de Coimbra, cujo nome era frequentemente referido por Júlio Fragata, meu professor na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa, em Braga, que, com ele, fazia parte do grupo que introduziu a Fenomenologia husserliana em Portugal. Por razões que não vêm agora ao caso, não tive oportunidade de acompanhar de perto a fundação e desenvolvimento da Universidade, embora o tenha tentado através dos jornais, mas, tal como agora, a imprensa continental não era pródiga na abordagem ao que se passava na Região, muito menos no que se referia à Universidade.
Devo confessar, contudo, que foi com bastante estranheza que recebi a notícia da fundação da Universidade dos Açores. Naquela época, em pleno funcionamento, o país ainda estava reduzido praticamente a três universidades estatais: Coimbra, Porto e Lisboa, a que se juntava a Católica, privada. As novas universidades do Estado, criadas pelo Prof. Veiga Simão, tinham pouco mais do que a sua criação legal e as respetivas comissões instaladoras. Sendo este o panorama, perguntava-me pelas razões ponderosas que teriam levado a criação de uma universidade no meio do Atlântico, numa região marcada pela descontinuidade geográfica e com uma população que não chegaria a 250.000 habitantes (380 238, segundo o senso de 1970, e 243 410, segundo o de 1981), em meu entender dado importantíssimo a ter em conta. O tempo, contudo, encarregou-se de me proporcionar oportunidades de me esclarecer sobre esta e outras dúvidas acerca da Universidade.
A primeira foi no “Segundo Colóquio Português de Fenomenologia”, que decorreu de 28 a 30 de abril de 1985, em Soutelo, Braga, onde conheci pessoalmente o Prof. Gustavo de Fraga. Alguns anos depois, tive a felicidade de receber em minha casa o Prof. José Enes e de ter com ele longas conversas ao serão em que aprendi imenso sobre a Universidade dos Açores, a cultura açoriana e filosofia.
Logo que cheguei a Soutelo, para assistir ao colóquio, procurei o Prof. Gustavo de Fraga, apresentei-me e disse-lhe que gostaria muito de falar com ele sobre a Universidade dos Açores. Não perdemos tempo, pois logo ao almoço, tivemos a primeira longa conversa. Expliquei ao Professor a minha estranheza pela criação da Universidade e referi as minhas dúvidas sobre a sua sustentabilidade. A resposta foi longa, meticulosa, cheia de dados factuais e esclarecedora quanto aos motivos da decisão de fundar a Universidade. A conversa foi há mais de quarenta anos, mas creio não faltar à verdade se afirmar que a resposta sublinhou como uma das razões decisivas para a criação da Universidade dos Açores foi a necessidade de uma tal instituição para a defesa e preservação da cultura portuguesa no contexto sociopolítico então vigente. Esta razão, tão sinteticamente formulada, foi justificada com uma série de factos que eu desconhecia por completo. Na despedida, no fim do colóquio, agradeci imenso ao Prof. Fraga a nossa longa conversa e, a partir daí, mantive-me atento ao que se ia passando na Universidade dos Açores.
Olhando hoje para a Universidade e para a produção científica do seu corpo docente, participação em colóquios e iniciativas, creio poder dizer que ela cumpriu e cumpre o objetivo que os responsáveis pela sua criação assumiram. Lembro-me de, há uns anos, num colóquio na minha Faculdade, ouvir o respeitadíssimo Prof. Victor Aguiar e Silva dizer que o Departamento de Literatura da Universidade dos Açores era um dos melhores senão mesmo o melhor do país. No que diz respeito à Filosofia, há uns anos fiz questão de dizer ao Prof. José Luís Brandão da Luz, então Vice-Reitor da Universidade, que os seus professores do Departamento de Filosofia que tinham participado em Colóquios e congressos de Filosofia organizados na minha Faculdade haviam, sem exceção, apresentado trabalhos de grande qualidade.
E é no âmbito das publicações dos professores da universidade açoriana que quero trazer o meu testemunho. Olhando para a produção científica dos seus professores percebe-se que a preocupação com a cultura portuguesa, concretamente produzida por açorianos, esteve e está bem presente e a obra do Professor José Luís Brandão da Luz é a prova disso.
A minha crónica de novembro de 2019 foi dedicada ao livro de Brandão da Luz com o título Os Açores na Filosofia e nas Ciências. Estudos I [Letras Lavadas Edições, 2019], em que o autor reuniu excelentes estudos sobre Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Arruda Furtado, Eugénio Pacheco, Caetano Andrade, Sena Freitas, Antero de Quental e Francisco Machado de Faria e Maia. Este ano o Professor fez sair o livro que dá título a esta crónica: Os Açores na Filosofia e na Cultura. Estudos II [Letras Lavadas Edições, 2022], em que reúne trabalhos sobre Gaspar Frutuoso, Bartolomeu de Quental, Manuel Arriaga, Teófilo Braga, Joaquim Maria da Silva, Francisco Maria Faria e Maia, Mateus de Andrade Albuquerque, Gustavo de Fraga, José Enes, Ruy Galvão de Carvalho e Manuel Pereira Medeiros. O que distingue estes estudos é o facto do seu autor ser alguém com uma vasta e profunda formação filosófica que enquadra a exposição do pensamento daqueles diversos açorianos, com formações diversas, pontos de vista distintos e proponentes de modos de pensar por vezes contrastantes. Naminha leitura, constato que o Prof. José Luís Brandão da Luz considera que subjacente à obra de qualquer autor está uma antropologia filosófica que lhe dá sustentação e é o ponto de vista a partir do qual olha o mundo e o conhece, quer tenha ou não consciência disso. Nos ensaios reunidos no livro, explícita ou implicitamente o Professor tem em conta a antropologia filosófica de cada um dos autores tratados.
Quero chamar a atenção especialmente para os estudos que Brandão da Luz consagra aos dois grandes filósofos açorianos Gustavo de Fraga e José Enes. Ao primeiro são consagrados quatro estudos: “Gustavo de Fraga: vida, filosofia e cultura açoriana”, “Gustavo de Fraga: a Filosofia e o apelo a uma ‘Pedagogia filosófica’”, “Gustavo de Fraga e a ideia de ciência em Husserl: a psicologia transcendental” e ”Gustavo de Fraga e a questão de Deus”; e a José Enes, três: “José Enes e o projeto da Universidade dos Açores”, “O sentir na metafísica do conhecimento em À Porta do Ser de de José Enes” e “José Enes e a experiência do ser como porto e porta do conhecimento”. Os títulos dos trabalhos dizem tudo quanto aos temas tratados pelos dois filósofos. É interessante que, sobre a questão de Deus, José Luís Brandão da Luz tem em conta os textos filosóficos de Gustavo de Fraga, mas também a sua poesia. Nos estudos sobre a obra de José Enes, sublinho a atenção dada por Brandão da Luz ao livro de José Enes com o título À Porta do Ser, uma obra nada fácil, mas que o autor dos três ensaios apresenta com aquela clareza que é apanágio de todos os seus escritos. Quem quer que hoje se debruce sobre as obras de Gustavo de Fraga e José Enes terá de passar, necessariamente, pelos escritos do José Luís Brandão da Luz.

Braga, junho de 2022

José Henrique Silveira de Brito *

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