Diário dos Açores

Memórias de Macau VI: O Faroeste Australiano

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As sociedades orientais aceitavam as concubinas, tradição secular cheia de normas e etiquetas, sem que as primeiras-damas levantassem um pio. “Tai Tai” é Mulher Suprema, número um, a mais importante. Hoje, seria a senhora casada com homem rico, que vai a almoços, com todo o tempo para chuchumecar, ir a compras, spas, usar diamantes, pérolas e peças genuínas Prada, Vuitton, Chanel, Gucci, bem formada, em cursos de origami ou culinária com os melhores chefes. O negócio das concubinas era o segredo mais mal guardado. Raros os chineses ou macaenses, classe média e alta, que não tivessem vidas paralelas, aceites pela comunidade e família. Hoje não é vulgar, mas era sinónimo de prosperidade.
No Natal 1979, fui ter a Cottesloe, excelente subúrbio de praia em Perth. Nos dias seguintes, com Charles Clifford, depois meu cunhado, deliciei-me nas águas quentes a bordo do iate Breakaway ao largo da ilha Rottnest. Dias de sol e mar a bordo ou na piscina, boa vida. Estava decidido a cumprir a promessa de fazer daquela a pátria adotiva, já que Timor estava a ferro e fogo. Um dia (Fremantle) estavam 43 °C, o MGB-GT descapotável da cunhada, recusou subir a rampa do parque. Todo o trânsito parou à espera que arrefecesse.
Trabalhava na CEM (09:00 às 17:00), vinha a casa tomar um duche antes de zarpar para a ERM (deglutida pela RTP sob o nome de Rádio Macau). Tive a meu cargo programas de música e sátira, mas já não fazia os noticiários e traduções de notícias. A Direção da RTP entendia que era demasiado rebelde e não acatava as censuras e ordens superiores. Os programas das 19:00 às 24.00, durante a semana, e ao sábado até às duas da manhã. Depois, íamos cear.
A organização secular chinesa, facilitava o meu paradigma, sabe-se lá se inspirado nele. É compreensível a busca hedonista. Apesar dos sólidos princípios em que fora educado, vivia uma fase desregrada, de regras orientais, prazenteiras para o espírito ocidental e que tantos estragos fizeram, em Camilo Pessanha (Coimbra, 7 set 1867 - Macau 1 mar 1926):
«Como as fotografias avivam em mim a esta hora de inverno português, entristecida de lufadas e névoa, a relembrança dos resplandecentes dias abafados de espera de tufão, vividos em companhia de Camilo, em agosto 1911, na linda e melancólica, risonha e estranha terra de Macau. Pobre e linda Macau dos sécs XVI e XVII, como és ainda curiosamente portuguesa à moda desses séculos, sob a taciturna invasão China que te envolve e, todavia, te dá ainda um aspeto de vida! E contudo, ó arcaica Macau, desde que Fernão Mendes Pinto andou de aventura no Império do Meio, assistindo aos primeiros avanços da potência tártara, que de memoráveis coisas se não deram nessa China imensa que só na aparência é milenariamente imóvel: abalada para o sul dos exércitos tártaros da Manchúria, queda da dinastia chinesa dos Ming, sangrento, como nenhum outro, triunfo da dinastia Manchu dos Ta-Tsing, dois séculos de terrível agitação das associações secretas chinesas contra o vencedor tártaro, indo, poucos meses após a minha passagem em Macau, até à abdicação do último imperador. Tanta coisa a dizer sobre a China e a sua arte!»
O biógrafo Antº Dias Miguel observa
“A vida alucinada de Pessanha no exílio serviu para que aprofundasse, pela repetição em diferença, traços abusivos já existentes no comportamento europeu. … o ópio “corresponde não a um vício adquirido, mas à sublimação, à transparência de outros que já em Portugal o caraterizavam, como o hábito de beber.”
Silvano Santiago escreveu (O Estado de S. Paulo 19 fevº 2011)
“Poeta, opiómano, expoente máximo do Simbolismo. Em 1894, foi para Macau, três anos professor de Filosofia Elementar no Liceu, em 1900 conservador do registo predial e juiz de comarca, em 1905 voltou a Portugal, apresentado a F. Pessoa que, como Mário de Sá-Carneiro, era apreciador da sua poesia. E se o poeta entender que a viagem à Ásia se se lhe apresentar como estrada real para o exílio na península e condição sine qua non para a exploração sentimental e amorosa do potencial de vida cortado rente à raiz pela foice da Lusitânia natal? E se a língua chinesa, aprendida pelo poeta e adotada no quotidiano, lhe servir para neutralizar o poder imposto pela dicção poética lusitana, inspirada na tradição greco-latina? A viagem a Macau será porto de desembarque. No espaço do exílio, o poeta estica o elástico da coerência íntima e secreta, experimenta a liberdade absoluta e inventa a original dicção poética. Longe da pátria, o poeta se vê estimulado a avançar com proveito e prazer a vida sentimental e amorosa que, a latejar no obscuro do desejo, deve ser a sua, legitimamente. Poemas do exílio podem não ser poemas do lá. No país onde o poeta nasce e onde devia viver até a morte, lá, não pode levar a cabo a vida que julga plena para si. Lá, não está sua pátria; lá, sua pátria não é.”
Digno de menção «O rio de Cantão» (1889) de Wenceslau de Morais começa pela panorâmica da varanda deliciosa do Canton Hotel e descreve a visita aos barcos-flores (“tancás-flores”):
“Quando desceu a noite, a população, embalada pela ondulação do Chu-kiang, adormeceu; bruxuleavam os faróis no topo dos mastros das lorchas; defrontando com o hotel, surgiam iluminações festivas, tancás-flores, donde irrompiam os primeiros acordes de música estranha. Aluguei uma sampana, e mandei remar para os tancás-flores, sobre cada barco eleva-se um espaçoso recinto, que os lumes de dezenas de candelabros iluminam em jorros de luz branca. Elas, envoltas nas longas cabaias de seda, ora branca, ora lilás, ora cor-de-rosa, ora esmeralda, os cabelos entrançados em enfeites de oiro e grinaldas de jasmim, cintilantes de joias, têm um encanto de beleza exótica que muito se casa com a estranheza do espetáculo.”
Já Pessanha o exprimia em «Ao longe os barcos de flores». Por todo o poema se encontram disseminados símbolos convencionais verdadeiramente chineses, de onde irradia uma série de imagens, poeticamente aproveitadas: hu-a (flor) é o termo que designa eufemisticamente a cortesã, a prostituta e o bordel. Uma virgem pode ser uma “flor amarela” huáng hua, enquanto yan-hua designa «la fille de joie», além de ser a expressão para «animado, animação e fogo-de-artifício». Significativamente, o componente semântico yan pode querer dizer «fumo, vapor ou tabaco» e ópio. Este poema é um texto dominado sabiamente pela ambiguidade, e o campo semântico do símbolo dos ‘barcos de flores’ leva a que no som da flauta se ouça o lamento feminino de uma yan-hua contrastando com a animação orgíaca do fogo-de-artifício.

“Ao longe os barcos de flores”
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
– Perdida voz que de entre as mais se exila,
Festões de som, dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora…
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flebil…. Quem há de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora…

Escrevi poesia e experimentei a liberdade, estimulado a avançar com proveito e prazer a vida sentimental… Essa flauta chorou anos na alma conturbada deste escriba. Nunca visitei uma tancá-flores, já todos em terra firme nesses tempos, mas ouvi a flauta, a orquestra e o som das orgias na escuridão entrecortada pelo fogo-de-artifício e estrelejar dos panchões. A errância de um povo e seus poetas, para quem a pátria foi, muitas vezes, «um lugar de exílio». Para quem a viagem e a emigração foram, como escreveu o poeta, mentor e amigo, José Augusto Seabra, a «outra pátria» senão mesmo a pátria. Fui para Macau, não para o exílio, mas para sobreviver já que o país de origem não dava condições nem emprego.
Macau ficou intimamente ligado a eventos amorosos (nem todos em rodapé) e não-amorosos que condicionaram o amadurecimento como pessoa. Alterei, cancelei, adiei projetos e sonhos por inventariar. Talvez por isso me tivesse esquecido, por décadas, que ali vivi seis anos. Aquela terra estava indelevelmente ligada a momentos extremamente difíceis, na memória de adversidades pessoais e emocionais, se bem que houvesse momentos mais felizes.
Em 1982 a Embaixada australiana (Hong Kong) mandou fazer as malas até dezembro, para não perder a autorização de emigrar. Fui trocar o Toyota Cellica 2.0 ST de 1979, por um citadino, Nissan Sunny 1.6 Hatchback, que consegui importar rapidamente de Hong Kong (o carro precisava de estar registado em meu nome por seis meses para ser isento de encargos e taxas de importação à chegada à Austrália). Cheguei ao continente-ilha a 15 janº 1983, exatamente no dia em que chegara a Macau seis anos antes. Mais velho, não necessariamente mais maduro, sonhava com casa com piscina, barco ancorado na marina e uma vida de futuro. Há sonhos assim feitos de algodão doce. No fim, nem casa, nem piscina, nem barco ancorado na marina, apenas mais um divórcio…


*Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713
(Australian Journalists´ Association MEAA)

Chrys Chrystello*

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