Diário dos Açores

Um sorriso no meio dos escombros

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A guerra já é um flagelo que janta connosco à mesa, entrando-nos em casa com uma naturalidade absolutamente assustadora. E o ser humano, enquanto indivíduo que se adapta ao meio envolvente, vai integrando no seu dia-a-dia aquilo que de menos bom o mundo lhe oferece. Porém, há um par de semanas, no meio das inúmeras notícias sobre a guerra na Ucrânia, houve uma pequena reportagem que me impressionou.
No meio da destruição que graça por aquele país, uma jornalista conversava com uma mulher que se encontrava no meio dos escombros da sua casa, procurando coisas que ainda pudessem ser transportadas para uma casa futura. Havia um sorriso perturbador no seu rosto. Vi-oe senti-me incomodado. Ao dizer à jornalista o que estava a fazer no meio daquela destruição, que outrora fora uma casa idealizada e sonhada para a sua família, onde terá experimentado tristezas e alegrias, ali, no meio do pó que parecera ter-lhe levado a vida, aquela mulher falou de sorriso na cara. A jornalista interrogou-se e depois questionou-a:
- Porque diz isso [a mulher afirmava estarà procura de coisas que ainda pudessem ter utilidade] a sorrir?
A resposta foi ainda mais desafiadora do que o seu sorriso.
- Faço o quê? Nós já chorámos muito. Neste momento é impossível chorarmos mais.
Não me lembro de ter ouvido mais alguma coisa a partir daqui. A resposta dela, que via parte da sua vida e das suas memórias totalmente destruídas, lançou-me múltiplas questões e tem pairado no meu pensamento.
Quantas famílias terão perdido tudo o que tinham? Familiares, casas, carros, campos e a vontade de (sobre)viver? Quanto desespero banhao povo ucraniano? Não é quantificável, mas sabemos ser imenso. Um absurdo.
Aquela mulher, que no meio dos destroços da casa onde certamente criou os filhos, os viu crescer e aguardou ansiosa e silenciosamente a sua chegada após todas as saídas noturnas, disse que chorou muito, mas que já bastava. Agora, é tempo de arregaçar as mangas, salvar o que for possível e recomeçar, mesmo que o amanhã não exista. E decidiu fazê-lo com um sorriso no rosto.
Perante as amarguras da vida, quantas vezes choramos e ficamos sufocados nas lágrimas da revolta e da desesperança? Quantas vezes sentimos que não é possível parar de chorar porque as ruínas da vida sufocam o nosso coração, fazendo-nos carregar um peso insuportável?
Esta mulher, que no meio da desgraça, sorriu porquehavia chegado a hora de parar de chorar, pois já nem lhe era humanamente possível continuar, é uma provocação para todos nós.
Perante a aparente destruição da nossa vida, o seu gesto provoca-nos e convida-nos a escolher o momento certo para parar de chorar, não numa perspetiva de fuga, porque o sofrimento acompanha a nossa existência, mas porque há uma real necessidade de avançar e continuar a viver, mesmo que o nosso coração ainda chore e sangre.
Esgotadas as lágrimas, escolhamos o sorriso e a esperança. Não nos devolverão o que perdemos, mas atenuam a dor que sentimos, abrindo-nos novos horizontes que podem ser abraçados de coração livre e apaziguado.

 

*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Adriano Batista *

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