Diário dos Açores

Esquecidos da literatura — e não só...

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Centenário de Pedro da Silveira, XV

A Leonor Sampaio da Silva e Ana Gil

A expressão «esquecidos da literatura» foi usada pela primeira vez por Pedro da Silveira, creio que no título dum artigo saído no jornal Ler em Outubro de 1952, quando ele já vivia em Lisboa, e constituirá desde então, para ele, quase um programa de pesquisa bibliográfica, arquivística e biográfica que deu notáveis contributos para uma renovada história da literatura portuguesa que não seja o eco repetido, repetido e repetido do que havia sido dito antes. Tal empreendimento só pôde ganhar velocidade de cruzeiro e concretização plena quando Pedro se tornou um leitor quase diário da Biblioteca Nacional (no Chiado até 1968), embora ao longo dessa campanha não raras vezes ele se queixasse de colecções incompletas de periódicos e da dificuldade em deslocar-se ao Porto e a Coimbra para encontrar o que não tinha à sua disposição em Lisboa. Mas o que realmente nos traz aqui hoje é o que o terá levado a esse caminho, e a resposta não demora a chegar: o eclipse a que haviam sido votados os irmãos Carlos e Roberto de Mesquita, como ele da Ilha das Flores. Bom sinal disso são «Carlos de Mesquita, ensaísta esquecido e poeta ignorado», publicado no Mundo Literário em Fevereiro de 1947,e aqueloutro artigo, no Diário Ilustrado de Agosto de 1959, que identifiquei e pela primeira vez se reproduz aqui — no qual Silveira lembra que antes de Pessoa, mas depois de Eça & Antero, Carlos de Mesquita também criou heterónimos.
À evidência de ter logo ali, na ilha mais ocidental e remota, dois distintos casos de escritores muito informados acerca de novas correntes estéticas — de Carlos escreveu algures que ele havia sido nada menos que o «teorizador e guia pensante do Simbolismo em Portugal»— somou-se, um pouco mais tarde, ter entendido que a cidade da Horta havia sido na segunda metade do século XIX um vivo centro cultural, beneficiando do seu cosmopolitismo náutico para estar a par do que se fazia na Europa e na América. Encontrou então argumentos para acreditar que o faialense Manuel Zerbone «foi talvez o primeiro discípulo português do poeta em prosa Charles Baudelaire», e anos depois destacou o micaelense Luís-Francisco Bicudo como o primeiro divulgador em Portugal do manifesto futurista de Marinetti (ainda por cima, não sendo entusiasta dele). Preto no branco, este protagonismo insular de vanguarda havia sido menosprezado, e não era coisa pouca...E afinal, que é a Antologia de Poesia Açoriana do Século XVIII até 1975 senão, em boa medida, o seu esforço de resgate de nomes soterrados em folhas de jornais muito velhos que ninguém mais lê?
No centenário do seu nascimento, ao viabilizar o levantamento do muito que ele escreveu ao longo de sessenta anos a Câmara Municipal de Lajes das Flores — e só ela, importa lembrar e sublinhar (antes que alguém venha tentar capturar louros que não lhe pertencem) — prestou um serviço aos Açores e a Portugal ao criar as condições essenciais para que Pedro da Silveira não seja, também ele, um esquecido da literatura. Podemos ainda ser surpreendidos por novas descobertas onde nunca esperaríamos encontrá-las (e eu nunca deixarei de procurá-las, como fiz e faço desde 2005 com Raul Brandão), e cada uma delas será celebrada com euforia e ufania, mas o conjunto já reunido e em vias de publicação vai sem dúvida reposicionar o historiador literário florentino no pódio nacional do seu nobre ofício — tornando 2022 o ano zero da sua valorização regional e nacional.
Voltando ao artigo de hoje, lembro que Pedro da Silveira publicou trabalhos relevantes tanto sobre Carlos de Mesquita, Carlos Fradique Mendes e Fernando Pessoa, entre os quais uma edição dos Versos do segundo e os primeiros poemas e a visita à Terceira em 1902 do terceiro.
A partir de Setembro já não será possível ocultar ou negligenciar a claríssima matriz açoriana do legado cultural de Pedro da Silveira, nem a sua consciência de que só fazendo pela vida os ultraperiféricos (sejam florentinos, sejam quaisquer outros) ganharão uma presença condigna, desde logo no exíguo meio açoriano, onde ilhas dominantes tendem a subestimar ou desvalorizar as outras. Ficará muito claro que Pedro da Silveira valorizou as Flores como poucos (depois dele, creio que, por enquanto, só Pierluigi Bragaglia). Nesse sentido, Pedro da Silveira poderá tornar-se um exemplo muito vivo — quase «um herói»... — para novas gerações conscientes e activas, de que os Açores, em especial as suas ilhas mais pequenas, tanto carecem e precisam.
Vasco Rosa

De Carlos Fradique Mendes a Álvaro de Campos

Quando aconteceu a Fernando Pessoa pôr-se a «inventar» os poetas seus heterónimos, decerto que o autor de Mensagem não pensou que estaria a suceder-lhe qualquer coisa nunca sucedida a outro alguém; o que, por outro lado, não significa, visto o problema às avessas, que ele tivesse em mente, inspirando-o, qualquer exemplo anterior remoto ou próximo, português ou lá de fora. (Tenhamos em conta, antes de mais, que em Fernando Pessoa o dom de conceder amigos-mitos o acompanha desde menino: Chevalier de Pas [1894], Alexander Search [1899], etc.).
Mas não vou agora arquitectar, nem tal pretendi, uma teoria acerca do Pessoa-inventor-de-heterónimos. Aliás, ao apontar-lhe precursores, mais também não pretendo que registar o facto de os haver, enunciá-los — e expor coincidências paragenealógicas coligadas.
É possível que mais longe pudera ter recuado, e fosse encontrando outros precursores; e fora de Portugal sem dúvida encontraria casos parelhos: para já, sem canseiras de busca, o do castelhano Antonio Machado (Juan de Mairena, Abel Martín, etc.). Mas, sem transpor a fronteira, e recuando apenas noventa anos, partamos desta data: 1869. É não a do nascimento, mas a da revelação, n’A Revolução de Setembro e n’O Primeiro de Janeiro, do poeta satânico Carlos Fradique Mendes.
Como se sabe, Fradique foi inventado (primeiras amostras da obra poética e biografia!) por Antero de Quental e Eça de Queiroz, com a cumplicidade de Jaime Batalha Reis. (O Fradique só de Eça, depois de, pela mão deste e de Ramalho Ortigão, fugazmente mostrar a sua figura de dandy europeu n’O Mistério da Estrada de Sintra, é de 1885; neste ano, Eça propõe a Oliveira Martins a publicação das cartas de Fradique, o que vem a ser feito três anos depois.)
É Carlos Fradique Mendes «apenas» um pseudónimo? Se alguém assim o considerar, leia o relato de Carolina Michaëlis de Vasconcelos sobre o que lhe disse Antero (no In Memoriam).
Passemos ao segundo precursor. Cinco anos depois do aparecimento do Fradique epistológrafo e vinte e um antes do de Caeiro, Reis e Campos, em Novembro de 1893, a revista Os Novos, de Coimbra, na qual colaboraram os simbolistas portugueses então mais em evidência, começou a publicar um estudo sobre a vida e obra de Jerónimo Freire, pintor e poeta, discípulo de Poe (em cuja pátria, dizia-se, se suicidara pouco antes), de Leopardi, de Baudelaire e, através de Antero, dos filósofos idealistas alemães. Quem escreve essa biografia espiritual de Jerónimo Freire é Carlos de Mesquita, que ao mesmo tempo se declara detentor do seu pequeno espólio poético e promete publicá-lo muito em breve.
O entusiasmo que a estranha figura de artista de Jerónimo Freire acendeu nas hostes simbolistas foi tal, que chegou a haver quem afirmasse (e convictamente!) ter conhecido esse pobre açoriano».1
Terceiro precursor: o romancista Bartolomeu de Frágoa, criado em 1895 pelo mesmo Carlos de Mesquita. O ensaio-ficção em que o retrata, destinado a sair no primeiro número de uma revista que Eça e Alberto de Oliveira planeavam, e que continuaria a Revista de Portugal, só pôde afinal ser impresso, não se havendo concretizado o plano referido, em Agosto de 1900 («Notícia dum romancista inédito», n’O Instituto, vol. 47, n.º 8).2 A data em que foi escrito lá está, posta já de parte por Carlos de Mesquita a ideia de atribuir uma obra pseudónima a Bartolomeu de Frágoa. Muito embora!; Philéas Lebesgue, no Mercure de France, fez-se eco da expectativa com que se aguardava o aparecimento dos romances de Frágoa (os quais lembrariam a um tempo os místicos portugueses, J.-K. Huysmans e Ibsen). E um moço poeta espanhol, que presumo ser Viriato Díaz-Pérez, escreveu a Carlos de Mesquita no sentido de saber onde poderia comprar essas obras. Mais ainda: além de dez anos decorridos, um crítico e ensaísta português, Fidelino de Figueiredo, parece admitir como real a existência do romancista Bartolomeu de Frágoa (cf. bibliografia de A Crítica Literária como Ciência).
Serão Jerónimo Freire e Bartolomeu de Frágoa «apenas» pseudónimos? (nunca, aliás, o foram!); ou teremos que considerá-los criações romanescas tout court?
O «espólio» de Freire (Jerónimo Freire, Obras Póstumas, prefácio de Carlos de Mesquita) só não foi publicado porque Mesquita, ao tempo estudante, não pôde dispor de dinheiro suficiente para o fazer.
Mas, e o caso de Pessoa?
Permita-se-me que exponha agora aquelas coincidências paragenealógicas que no princípio me propus.
No último artigo que escreveu («Sobre a genealogia do Camões», na Contemporânea, III ano, n.º 10, 1924), Teófilo Braga, aludindo ao carácter científico dos modernos estudos de linhagens, lembra quanto podem contribuir, no que dão de «hereditariedades atávicas», para a compreensão das vidas das «altas individualidades históricas». E cita, a propósito dos vários poetas de apelido Camões aparecidos em Portugal desde 1366, dois outros exemplos eloquentes de atavismo: os 24 músicos havidos na família de Beethoven, a dinastia dos Bernoullys matemáticos.
Se nos detivermos a analisar as genealogias de Antero, Eça, Mesquita e Pessoa, verificamos (mas, na verdade, não se verifica invariavelmente com toda a gente e em todas as circunstâncias!) a coexistência, em maior ou menor grau, de tais «hereditariedades». Quanto a Antero e Eça, por bem conhecidas, não as referirei aqui. De Carlos de Mesquita, direi que, além do seu décimo quinto avô, Duarte Pacheco Pereira, se encontram na sua linhagem, do século XVII até agora, 11 casos literários notáveis. E, quanto a Pessoa, considerando apenas a sua linha materna (pois é essa que me interessa aqui), temos, além da tia Maria Xavier Pinheiro, três parentes remotos dados às letras: José Joaquim Pinheiro (autor dumas Épocas Memoráveis da Ilha Terceira e jornalista), José Augusto Nogueira Sampaio (médico de profissão, fez jornalismo e estudou a fauna e a flora terceirenses) e Alfredo Nogueira Sampaio (autor duma Memória sobre a Ilha Terceira).
Mas há ainda um outro ponto a considerar: Antero e Mesquita nasceram nos Açores, ambos de famílias nobres ali estabelecidas desde os primórdios do povoamento; Eça e Pessoa, aquele mais remotamente, este a distância de uma geração, têm sangue açoriano, também de famílias nobres (Pessoa não inteiramente). Ora, o parentesco de Eça e Antero, por Sousas, não é difícil de descobrir, da mesma maneira se achando que as estirpes destes (ainda estirpe una) se encontram com a de Mesquita no século de Quinhentos. A respeito de Pessoa, faltam-me fontes seguras: o que se entrevê numa consulta do Nobiliário da Ilha Terceira, de Azevedo Soares, não chega para avançar coisa alguma.
Que poderá concluir-se de tudo isto? Por mim, confesso que as verificações feitas, estranhamente curiosas, aliciantes, me levam, por isso mesmo, a deter-me no limiar da porta para lá da qual acaso estará o segredo delas. Ou não haverá mesmo nenhum segredo, nenhum «atavismo» comum, e tudo não passará de puras coincidências? Coincidências, admitamos... Mas que muito agradariam ao genial fabricante de mitos chamado Fernando António Nogueira Pessoa.
Resta ver se há sinais de família entreligando os «açorianos» Carlos Fradique Mendes, Jerónimo Freire e Bartolomeu de Frágoa e os «metropolitanos» Vicente Guedes, Carlos Otto, C. Pacheco, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, para além do exterior heteronímico. A falta de espaço obriga-me a adiar essa outra divagação paragenealógica. (Ou não será ela, afinal, inútil?)

Pedro da Silveira
In Diário Ilustrado, Lisboa, 28 de Agosto de 1959, pp. centrais e 9


1Cf. notícia do aparecimento do n.º 1 d’Os Novos na Revista Livre, também de Coimbra (p. 24 do n.º 1, Dezembro de 1893).

2Esta revista está disponível em linha. Veja-se digitalis-dsp.sib.uc.pt/institutocoimbra

Vasco Rosa *

 

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