Diário dos Açores

A Ucrânia em perigo

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Fiquei deveras consternado ao ver num dos canais de televisão filas enormes de carros com gente que aguardava a sua vez para regressar a casa, nas zonas consideradas como dominadas pela Rússia. Não estava à espera de um sinal tão evidente de desmobilização e de aceitação da derrota por parte de cidadãos de um país vilmente atacado e invadido por outro, que nele mantém uma guerra traiçoeira e com permanentes morticínios.
Afinal, e pelos vistos, há quem se sinta capaz de viver sob o domínio russo em território situado dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas como delimitando a Ucrânia. Tratar-se-á de pessoas de ascendência e cultura russa, os russófonos oprimidos a que alude o ditador de Moscovo, para justificar a guerra? Não fiquei esclarecido com a notícia em causa, das raras aliás por mim observadas, e por acaso, desde que estalou o conflito, que prefiro seguir pela Imprensa.
O que sim é conhecido é o tratamento dado pela Rússia às terras ocupadas e aos seus habitantes, replicando o que aconteceu  no Cáucaso e na Crimeia há já uns bons pares de anos. São às pessoas atribuídos novos papéis de identificação, implicando a mudança para russa da sua nacionalidade; as chefias militares de ocupação instalam no terreno autoridades simpatizantes com a Rússia, dotadas de plenos poderes de ordem administrativa; preparam-se referendos de independência-fantoche ou de pura e simples integração na Rússia; no primeiro caso, a independência só vem a ser reconhecida pela Rússia e por um ou outro estado-pária do tipo Coreia do Norte; o mesmo se passa no caso de forçada integração. Não me espantaria que em breve fossem hasteadas as bandeiras das Repúblicas de Lugansk e de Donetsk, sinalizando a efectiva partição da Ucrânia, o que permitiria à Rússia cantar vitória, mesmo que apenas parcial e longe dos objectivos enunciados no início da invasão. Mas grão a grão - Abkázia e  Ossétia, há anos na Geórgia, depois Crimeia e agora alguns pedaços da Ucrânia, amanhã talvez algum dos países bálticos ou até parte da Finlândia - lá vai o ditador russo refazendo o antigo império de Estaline na Europa, a pretexto de se sentir cercado pela NATO.
Para a União Europeia e para os Estados Unidos uma tal situação é deveras constrangedora. Mas o certo é que para já ambas estas entidades se encontram em confusão política e por isso com as suas capacidades de intervenção limitadas. Com a queda dos Primeiros Ministros do Reino Unido e agora da Itália perdeu a Ucrânia convictos apoiantes; o Presidente da França ficou sem  a maioria absoluta de que dispunha no Parlamento e vai ter de se concentrar mais nos problemas internos do seu país, sendo de resto conhecidos os seus rompantes de diálogo com Moscovo; o Chanceler da Alemanha lidera uma coligação de três partidos e vai ter de aguentar os reflexos das sanções decididas contra a Rússia, que se estimam dolorosos para a economia e para a vida das pessoas, ao longo do próximo Inverno; lá para o Leste há uma certa cacofonia que mal disfarça algumas atitudes pró-russas; a Turquia anda a mostrar que também vale alguma coisa, e vale mesmo, pela sua dimensão e pelo vezo autoritário do seu Presidente; e até os governos dos países ibéricos abandonaram a sua habitual atitude de seguidismo dos países maiores e estão a marcar dissonância quanto à orientação europeia para reduzir o consumo de gaz. Quanto à América, está a caminho de eleições de meio mandato presidencial e parece mergulhada num conflito cultural profundo e de muito mau prenúncio. Ir enviando armas cada vez mais sofisticadas para a Ucrânia talvez se possa fazer; mas é preciso que no próprio país que é teatro de operações e naqueles que o têm apoiado a frente interna se mantenha unida e inabalável!
Bem nos foram avisando alguns, mais sabedores, que esta guerra podia vir a ser longa e muito desgastante. Também a Grande Guerra, quando começou, em Agosto de 1914, estava prevista acabar antes do Natal e foi o que se viu, com milhões de mortos e brutalidades sem paralelo; o Armistício de 1918 apenas interrompeu as hostilidades, que voltaram em 1939, pondo então a Europa e o Mundo inteiro em chamas. Os conflitos limitados que marcaram a segunda parte do século XX, as guerras coloniais da França, na Indochina e na Argélia, e de Portugal, em Angola, Moçambique e Guiné, a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnam, as várias guerras posteriores à dissolução da Jugoslávia, a Guerra da Rússia no Afeganistão, e já no nosso Século as guerras da América e da NATO no Afeganistão e no Iraque - todas elas e ainda os conflitos larvares em vários pontos da América do Sul, a pretexto do combate ao tráfico de droga, que é uma das piores doenças das nossas sociedades, arrastaram-se ao longo do tempo e algumas acabaram mesmo com a apressada saída das tropas das grandes super-potências militares, deixando no terreno material abundante e sobretudo inúmeros dos seus apoiantes, de imediato esmagados pelos novos senhores do país.
Julgo ser predominante entre nós o desejo que o conflito em curso termine com a vitória da Ucrânia e dos países que a têm apoiado e  com a derrota e humilhação dos invasores e dos nefandos senhores da guerra que o iniciaram.  Mas nem sempre, por melhores que sejam, os bons desejos se cumprem.


*Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.

João Bosco Mota Amaral*

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