Diário dos Açores

O GIGANTE ADORMECIDO

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Ao longo de séculos, as quase infinitas estepes eslavas do futuro grande Império Russo foram varridas por invasores. Sob o domínio dos tártaros orientalizaram-se sem contatos com o Ocidente. A estes invasores sucedeu-se o pesadelo do feroz jugo mongólico.  
A ascensão do Império Russo acontece diante das potências rivais devido ao declínio dos Impérios vizinhos, seusfortes inimigos. Mas era ainda uma terra de bárbaros que chocava o Ocidente. As invasões napoleónicas deram um forte impulso para reforçar o estimular do que se pode chamar a “alma russa” patente nas suas lendas, músicas e danças e espírito hospitaleiro que Carl Grimberg, autor de uma História Universal, nos revela.
É através das obras dos grandes escritores russos que melhor se entende a visão do mundo daquele tão grande povo, numa amalgama de etnias, com o seu misticismo, as suas misérias e contradições, aquele espirito infantil e cheio de excessos que levam muitos intelectuais portugueses da “Geração de Setenta” a generalizar e considera-os “loucos”.
Porém é pela profunda riqueza da literatura russa que nos oferece uma verdadeira fonte de entendimento da trágica e desmurada história e da idiossincrasia deste grande povo. Nomeadamente no século XIX destacaram-se Pushkin, que se considera um dos fundadores da linguagem literária russa moderna, Tchekov (1860- 1904) com as suas personagens sempre em meias alegorias porque “tudo no palco deve ser como na vida: as pessoas almoçam, bebem chá e ao mesmo tempo arruínam as suas vidas (1860-1904) Turgueniev (1818-1883) o primeiro escritor russo a celebrizar-se na Europa. Gorki (1868-1936) envolto em atividades políticas, revolucionária, discordando de Lenine, sem conseguir conciliar os seus ideais artísticos com o socialismo estalinista de que se tornou arauto arruinou a sua reputação artística. Porém, nenhum outro escritor, além de Dostoievsky, terá aprofundado mais longe o eterno problema da liberdade e do livre arbítrio. A leitura de ”O Grande Inquisidor”,  inserido na sua obra prima “Os irmãos Karamazov” é obrigar a refletir sobre os mais angustiantes mistérios da consciência.
– O Grande Inquisidor mostra como a humanidade não quer o livre arbítrio. Ao condenar de novo Cristo o grande Inquisidor dá em troca a obediência e a servidão: tudo, tudo, eles (os pecadores) trarão a nós e permitiremos tudo, e eles acreditarão em nossa decisão com alegria por ela os livrará também da grande preocupação e dos terríveis tormentos atuais de uma decisão pessoal e livre.
O conde Leon Tolstoi (1828-1910) deixou-nos uma obra universal. Tornou-se na magna obra prima do século XIX ao descrever com realismo os mundos em que viveu intensamente e um estranho povo, por vezes infantil, sem vontade de prosperar nem alterar a sua situação. O seu humanismo. Não deixou romances, nem as suas teorias anarquistas, ou a sua pedagogia de Poliana. Deixou-nos “um pedaço de vida”.
Esse mundo que as invasões napoleónicas encontraram era ainda absurdamente afastado da ocidentalização. “O que um russo não faz imediatamente, jamais o fará.
Os novos ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” que levavam os monarcas da Europa a tremer pelas suas cabeças não tinham profundos ecos naquele povo. A servidão que dominava os russos dava um poder absoluto, implacável, com assento na religião, e sem limites aos seus governantes diante de uma população  amorfa, dada a excessos alcoólicos, uma das facetas dos russos, pelas orgias seguidas de dias miseráveis...
Principalmente em “Guerra e Paz” e “Anna Karenina” Tolstoi consegue entrar no âmago da alma russa e dos problemas que atormentam qualquer homem. Deixou quadros que mostram claramente o abismo que engolia qualquer veleidade de atenuar os conflitos entre as classes sociais, os contrastes da terrível servidão e miséria dos mujiques, aldeãos, e quase todos os trabalhadores e operários. Traça um retrato de muitas personalidades russas e as suas fraquezas e a resistência com que enfrentavam as adversidades. Escritores e críticos de todo o mundo, tal como Virginia Woolf, Proust, Faulkner ou Nabokov encontraram nele a natureza transformada em arte.
Devido à sua imensa superfície ser desprovida de litoral que a ligasse ao exterior, as suas redes hidrográficas levaram a voltar-se para os seus grandes rios. Porém até o extenso rio Volga desagua num mar interior, o Cáspio. Será uma capital dos interiores que, por muito tempo, se voltam os russos. Kiev, hoje cidade da Ucrânia, fundada em épocas lendárias, reuniu primeiro à sua volta as outras cidades pelo seu interesse comercial. Segundo Grimberg, os russos seguiram a tradição dos viquingues, ora deslocando-se pelos rios, ora pelas suas margens.
A conversão em massa que o príncipe Vladimiro obrigou o povo todo  a um batismo cristão que já se difundira depois da ida a Constantinopla. À obediência do povo seguiu-se o interesse dos ricos pela construção de mosteiros, conventos e à aparição de seminários. Surge porém uma contradição entre os interesses desses ricos que encontravam paz para a sua velhice e do povo que continuava faminto.  Afinal, aquelas construções só beneficiavam os ricos e torna-se num sonho que os pobres não partilhavam sem desconfiança.
Apesar disso a dinastia Romanov é que introduziu o cristianismo e diante do Ocidente, Dostoievsky afirma que “Deus é a alma do povo russo e o escritor Merejkwsky (1865-1941) levanta a questão da inegável fé dos russos a uma dama alemã: Vós, Ocidentais sois fortes, inteligentes justos (..) Nós, nós somos pobres animais, nus, bêbados, piores do que os bárbaros Mas o nosso paizinho, Cristo está e ficará connosco até á eternidade.     
Desde o século XII, apesar do crescente desenvolvimento que crescia em Moscovo, Kiev simbolizaria para a Rússia o que representa Roma para a cristandade do Ocidente. Com toda a sua beleza, cultura e o esplendor das igrejas e a visão das cúpulas douradas tornavam natural de dizer na Rússia:
“Todos os caminhos vão dar a Kiev.”
A chamada “grande desordem” terminou com o reinado de Miguel Romanov que pôs fim às disputas pela posse do trono. Esta seria a última dinastia dos Czares. Iniciada no século XVI, o seu declínio e o seu derrube em 1917. Virava-se um capítulo da História da Rússia.

Lúcia Simas  *

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