Diário dos Açores

Que lenço cobriria a dor de Natividade Ribeiro

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Conheci a Natividade nos tempos do Liceu. Voltei a encontrá-la na Faculdade de Letras de Lisboa. Perdemos o contacto. Andei por Setúbal e regressei aos Açores. Ela foi para Macau e retornou a Lisboa.
Em 2021 recebi uma mensagem da Natividade informando-me que me tinha encontrado através de outra açoriana, que seguia nas redes sociais. Assim nos reencontrámos e trocámos algumas mensagens. Enviou-me o livro A Casa Azul, obra que me deixou uma forte impressão porque me reconheci em muitas passagens e fez-me evocar uma adolescência inquieta, aparentemente despreocupada, mas assaz desassossegada e inconformada com o ambiente sombrio em que se vivia. Escutando as vozes de mudança que vinham de outras latitudes, projetava-se em nós uma vontade inabalável de ultrapassar barreiras e saltar muros, como expressa a Natividade no seu poema «Porém», do livro Em Corpo de Palavra (2021): «Nos vastos campos da infância/ Ainda que rodeados de mar (…) /  havia o livro do mundo aberto (…). /  Porém / o livro a fechar-se, a fechar-se… // Imensos muros! Impuros muros!»
Falemos do livro Que Lenço Cobriria a Dor – um título que encerra uma pergunta que nos interpela e nos persegue ao longo de toda a leitura, e à qual somos quase como que impelidos a dar uma resposta.
A escritora, diagnosticada com um cancro da mama em plena pandemia, relata-nos, na primeira pessoa, a penosa experiência de um ser humano à beira de uma situação-limite. E partilha connosco o sentimento de solidão da pessoa quando confrontada com a circunstância de finitude. Ao olhar-se ao espelho constata essa situação porque lhe é devolvida a imagem de precariedade da existência. Para exemplificar esse caminho solitário de abandono perante o reflexo do espelho, recorro ao poema sob a anotação titular «(Marcada a data da cirurgia)»:
“Embora depois no vestiário desinfetado tenha feito uma selfie / para não perder um grande espelho que gritava /   Fragilidade Vulnerabilidade/ Tendo considerado aquele espelho / precisamente aquele espelho desprezível. / E o combate? O Duelo? / Não valia a pena dizer a verdade sobre a certeza das incertezas  (…)» (pp. 27-28)

Perante grandes ruturas somos como que alheios a nós próprios porque a dor rompe a unidade do ser. Olhamo-nos com estranheza e questionamos o nosso Eu fragmentado pela violência dos acontecimentos. «Como continuar a existir, se o tempo se quebrara de repente?», pergunta Teolinda Gersão, no seu livro Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo. Cada um dará a sua resposta porque a dor, segundo os especialistas, não é só um facto fisiológico, mas é sobretudo um facto existencial.
Apesar de nos levar à geografia da dor humana, a autora não cede ao desespero nem desiste de lutar; pelo contrário investe numa atitude de muita confiança e perseverança perante os factos. Ao recusar o desânimo e o conformismo, aponta-nos um caminho como modo de dar forma ao indizível e recuperar a unidade quebrada.
Uma primeira vertente desse caminho consiste na escolha da escrita e da leitura como imperativos de resistência para a sua fome de ser.
A segunda será o apelo constante à natureza, como bálsamo para a regeneração de forças, e um chamamento do mar e do rio como elementos que sustentam o seu imaginário.
Na descrição da sua vivência encontramos ainda uma terceira forma de suplantar a dor: o apelo à infância, como casa sagrada aonde se retorna para procurar abrigo, e a invocação à ilha/berço como porto firme, onde se ancora depois das tempestades: «As bonecas deixam sempre na casa pequena de Madalena o cheiro a infância que é a casa maior que há».
E voltemos ao título: Que Lenço Cobriria a Dor.
Qual a sua funcionalidade ao longo do relato? Quais os valores simbólicos que lhe estão associados?
Por um lado, o lenço apresenta-se como um adereço que cobre a ausência de algo e simultaneamente embeleza. O lenço configura-se como um antídoto contra a incerteza que inquieta, transmitindo confiança e segurança.
Por outro lado, há um lenço em sentido metafórico, que vai dando resposta à dor. O lenço da memória, tecido de tempo. É na revisitação dos lugares da infância, nas memórias da ilha, que a escritora vai encontrando vigor e lenitivo para o tormento da doença e seus contornos. Com todas as vicissitudes inerentes a este estado resta o reduto da memória.
Mesmo sendo uma história pessoal, a autora envolve-nos no decurso dos acontecimentos e toca-nos com os seus questionamentos sobre o sentido das coisas e somos chamados a partilhar das dúvidas inerentes à nossa condição. O livro cumpre o propósito de mostrar que só somos uns com os outros.
Mas este livro é também feito de luz, começando pela crença no valor mais importante que podemos ter que é a vida, passando por outros valores como a ternura (pelo seu companheiro de sempre e pelo seu filho, por exemplo), a estima, o humor, a esperança, o belo, a gratidão ao universo e acabando no afeto incondicional à sua Vila Franca do Campo. Valores estes que aqui funcionam como forma de dar sentido e significado ao mundo em tempos inquietos e conturbados, a nível pessoal e coletivo.

Natividade Ribeiro, Que lenço cobriria a dor.

Conceição Mendonça *
Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2022

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