Diário dos Açores

Seja bem-vinda a caravana do futuro

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Memorandum

1 – a pobreza não emigra – apenas muda de residência
 
Desde há vários séculos, os açorianos são romeiros na via-sacra do seu relacionamento ‘amor-ódio’ com a solidão – uma das pestíferas enteadas da distância. Aqueles ilhéus que foram forçados a trepar a muralha da imigração ficaram cientes de que o berço movediço da sua ancestralidade étnica, chama-se mar salgado. A maioria dos emigrantes viaja com a respectiva maleta ‘cheia-de-nada’ (embora por vezes a sua coragem seja considerada ‘excesso de bagagem’ pelos zelosos vigilantes da miséria alheia).  Nos tempos modernos, o imigrante não receia o desafio da globalização: aliás, a pobreza já não emigra, muda apenas de residência...
Imagino que a nação portuguesa ainda merece os seus emigrantes (embora o Estado português, a meu ver, raramente os merece). Falo por mim: os imigrantes açorianos não são apátridas;  são porventura peregrinos sem santuários à vista, perdidos & achados  no ‘casto luto da mudança duma luta de cansar / preso no fio duma aposta’.  Aparentemente, a odisseia imigrante não resiste à sua repetição, dado que o tempo que é circular...
Pelos vistos, no Outono de 1980, optámos por aceitar o ultimatum para ultrapassar (com dignidade cívica) as muralhas geográficas do destino. Naquele tempo, só nos restava esgueirar à vigilância da confraria beatorra dos ‘deusitos’ – os auto-proclamados armazenistas do guarda-pó da puridade açórica...
Ora, o tempo continua a servir de sabonete para perfumar o sovaquinho do passado: nos últimos tempos, procuramos andar de peito-aberto para o oceano Pacífico, para manter a memória humedecida pela brisa nostálgica do Atlântico Norte... São feitios!
Recordo (era ainda muito novito) o tempo em que ficava voluntariamente cativo do ‘feitiço’ da imensidade californiana. Na década 1950-60, a maioria dos adolescentes da minha geração gostava de ocupar as tardes de domingo a ver estórias cinematográficas das cowboyadas ilustradas com pistoladas e aguaceiros de sopapos: os filmes terminavam quase sempre com menos índios vivos nas pradarias herdadas dos seus antepassados...

2 – quem são os donos dos danos humanos...?

 Com o devido respeito pela franciscana paciência do nosso ‘leitorado’, não vamos hoje sobrevoar as causas originais por que os emigrantes micaelenses (ao contrário dos seus irmãos do grupo central e ocidental) se resignavam ao destino traçado pelos capitães-generais  da indústria têxtil da Nova Inglaterra. A análise responsável desses factos terá porventura merecido estudo aturado dos especialistas na matéria. Não custa admitir que a mal-disfarçada solidariedade feudal das elites económicas instaladas em ambas as margens do Norte-Atlântico terão contribuído para romantizar a mobilidade açoriana – como quem diz ‘if you rest, you rust’.
Talvez valha a pena relembrar que, na sequência da revolução industrial (que provocou o feliz desassossego da mobilidade social), veio a globalização electrónica, criadora da paranóia da instantaneidade. Como vimos aprendendo, a fronteira que divide a inteligência biológica da chamada “inteligência artificial” não pode ser guardada pela força, mas sim pela velocidade. Aliás, muitos já desconfiam que estará  para breve a consagração dos ‘direitos’ reclamados pelas máquinas com “inteligência-não-biológica”...
Por outro lado, o acesso democrático ao prazer, o risco voluntário pela aventura do desconhecido, a saudável ilusão de que a velhice é aquilo que só acontece aos outros – são fenómenos relativamente recentes. No passado, aqueles que logravam alcançar o estatuto existencial de ‘boa-vida’ corriam o risco de pisar terrenos pecaminosos!  
Seja bem-vinda a caravana do futuro! Mas... afinal, que vai acontecer à saudade? Claro que não sabemos. Todavia, como marca registada da nostalgia lusitana, a ‘dona saudade’ corre o risco de ser despromovida ao estatuto de mero eco emocional do imaginário colectivo...

P.S. - Estivemos (uma vez mais) a dedilhar estas breves considerações em nome pessoal. A tentação de dizer coisas originais não faz parte da constelação dos nossos pecados. Mas nem sempre se perde tempo na auspiciosa tarefa de espevitar o torpor existencial dos missionários do ‘bocejo transcendental’...
 
*O signatário do texto não aderiu ao recente acordo ortográfico        

João Luís de Medeiros*

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