Diário dos Açores

Reflexos da alma russa

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Afinal que aconteceu na Rússia apóstodo os contatos com outros povos, as viagens pelaEuropa, a mão de ferro dos Czares quedispunham daexistência de milhões de pessoas para “bem do Estado”?
Desconhecendo a vida dos servos, a força dos impostos transformaram-nanuma fortíssima potência. Todavia esses russos,com longas barbas e com grossas túnicas, não se assemelhavam aos europeus perto de experimentarem a revolução industrial e a sua tenebrosa miséria.
Os Czares esmagavam o povo rude e ingénuo com a noção da existência de um Deus que, embora muito longe, um dia os viria salvar. Afinal, o Czar era o paizinho de todos, embora nunca o vissem,imaginavam que não valia a pena lutar contra a desgraça, o fatalismo que os perseguia.

Os factos transmitem somente acontecimentos, faltam o sangue derramado em vão, os conflitos profundos entre o bem e o mal, o arrependimento, o remorso e as paixões. O “pathos” na Rússia é a desmesura!
Catarina, a Grande (1729-1796), determinou o seu próprio destino e governou durante 35 anos, como déspota esclarecida. Se as reformas causaram o descontentamento dos nobres concedeu-lhe privilégios, criou uma corte culta, diminuiu as torturas e a pena de morte, permitiu a liberdade de culto, ocupou algumas propriedades eclesiásticas em proveito do Estado, mantendo conventos e igrejas.
A ambição de acesso ao mar obrigou-a a diversas guerras para se aproximar da Europa central. A vitória sobre o Império Turco aumentou as fronteiras.
As cartas trocadas com Voltaire (1694-1778) filósofo, sarcástico e mordaz, mostraram como pretendia ser uma déspota iluminada. Voltaire vivia como escrevia e despertava a revolta contra a intolerância, agitando os espíritos para a Revolução francesa.
 As campanhas vitoriosas das tropas napoleónicas, espalharam pela Europa e pelo Novo Mundo. Traziam uma nova etapa do Espírito. Os tronos tremeram com a impossibilidade de reprimira força do novo Espírito.(Hegel).
As reformas pareciam fáceis de implementar. Mas os russos sabiam que os seus soberanos os guiavam com extrema dureza. Nas sombras, o medo e as suspeitas revelavam a sua presença constante. Ninguém obedecia, mesmo entre familiares, sem o recurso à força e um terror que não evitava a tortura, os castigos terríveis e uma submissão até à morte como prova do poder.
No meio de paixões e excessos de toda a espécie, abriam-se as portas ao conhecimento e a reformas que não resultavam pois no devir histórico ninguém altera o que tem de acontecer.
Catarina, como os Romanov, vivia convicta de que todo aquele poder vinha dos desígnios de Deus, escolhida para missões espantosas e o povo teria de obedecer cegamente.

As invasões provam que Napoleão deixara de representar a realização do poder do Espírito. A partir da campanha da Rússia, face a um Napoleão perplexo, outras nações rebelavam-se e ele deixava de representar o “espírito do Mundo” que deslumbrara Hegel e o faria escrever como as paixões realizam novas etapas do Espírito de Mundo.
As páginas dos grandes literatos russos representam umpovo euma terra onde tudo é excessivo. A apatia, carregada de sofrimentos, as paixões que se albergavam no luxo, o desvario dos burgueses. Os estudantes, ao visitarem a Europa, tornavam-se liberais mas a tentativa de proximidade dos camponeses demonstrou a luta entre o espírito do povo e a nova etapa que não se realizava. Os Czares odiavam a imprensa enquanto a polícia secreta reprimia qualquer rebelião.
Dostoievsky é conhecido por obras-primas como Os Irmãos Karamazov. Em “O Idiota”o príncipe Michkin, epiléptico, como o escritor, surge-nos incompreendido por não ser como toda a gente - a narrativa parte do olhar dos outros e torna as suas opiniões e ações opostas ao conformismo, num ambiente amorfo da sociedade.
   A narrativa acompanha as crises e, ao mesmo tempo as angústias e o medo da miséria que Dostoievsky vivia, endividado e exilado, com a esposa.
Assim entramos num mundo onde as metáforas da bondade do personagem levantam paradoxos aos incrédulos e oportunistas. As frases e ações de Michkin, que ninguém entende, não passa de desvarios de um “simplório”.
A sua vida cristã mostra-sena compaixão, na busca do bem, na angústia e sentimentos de culpa. O assassinato do pai de Dostoievsky, que ele desejou, tem ecos das maldições dos Romanov.
Tchekhov, médico e escritor (1860- 1904), alémdos contos, no seu teatro expõe a vida russa com toda a inquietação e melancolia de um quotidianoexasperante. Atento à situação feminina, os monótonos angustiantes e realistas são a imagem dos burgueses e da aristocracia provinciana e decadente. As criações finais, “O Tio Vânia”ou “As três Irmãs” mostram as mágoas, a impotência e os sentimentos mais profundos que exasperam contra a monotonia carregada de pormenores com o envelhecimento de vidas atribuladas com perda inevitável das ilusões.
As contradições e os cenários em que se desenrolam as tramas retratam uma sociedade com vivências que nos desagradam, espantam e esclarecem a força que inspira os autores como espelhos da alma russa.

A incapacidade de firmar uma vitória diminuía as forças invasoras. Usando a estratégia da “terra queimada” os os russos recuavam, sem desistir, apesar das derrotas. A chegada a Moscovo foi a prova de um fracasso inevitável. A “guerra total” foi uma das catástrofes mais terríveis da História.
O general Rostopochine, um dos primeiros a libertar os servos, teve coragem de incendiar Moscovo levantando injúrias terríveis. As tropas entraram numa cidade fantasma. Começava o declínio de Bonaparte e a sua queda
O grande narrador dessa saga será Tolstoi em “Guerra e Paz”, um um texto enorme com muitos episódios verídicos com fundo filosófico. Transgredindo os códigos narrativos mereceu um tal aplauso do público que até surpreendeu o autor. O historiador Lucas-Dubreton refere como “ a natureza humana, exaurida, desgastada pelo sofrimento, (…) já não havia hierarquia nem disciplina; só um egoísmo feroz; sob o mesmo nível de miséria.”
A condessa de Ségur, filha de Rostopochine, conhecida universalmente pelos escritos dedicados às crianças, conheceu a velha Rússia que desaparecia depois das invasões. As suas recordações são fonte preciosa de conhecimentos de um mundo onde o medo se escondia mal os castigos e bordoadas. Sofia Rostopochine, sempre esfomeada, embora primorosamente educada, aos 4 anos dominava diversas línguas, conheceu a dureza, severidade e correctivos violentos que atingiam todos. Os lobos atormentavam ainda o mundo da escritora que viveu essa angústia das caçadas, do medo das florestas onde se escondiam animais terríveis.
Perplexos face à realidade em que viviam os escritores espelham bem o estado de consciência que a todos subjugava. A evolução da História filosoficamente fatalista, sem livre-arbítrio com as suas espantosas narrativas representa, com realismo nas densas descrições psicológicas, o ambientes conturbados carregados de contradições e inquietaçãoda alma russa.
As novas gerações de intelectuais e universitários europeus apoderaram-se da literatura russa, com nomes que se tornaram universais, para maior compreensão da condição humana.

Lúcia Simas  *

 

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