Diário dos Açores

Romarias à Senhora da Saúde

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Veio mesmo a calhar termos passado os olhos pelos arquivos da terceira série do jornal A Estrela Oriental, em vésperas de Nossa Senhora da Assunção, e ter deparado com o magnífico suplemento do mês de setembro de 2001, dedicado exclusivamente às Caldeiras da Ribeira Grande.
   Não precisamos dizer que, logo, atentamente, começámos a ler aquele trabalho sob o título “CALDEIRAS DA RIBEIRA GRANDE - Esboço para um estudo da paisagem”. Mas estando a meio, saltou-nos da memória esquecida o facto de já termos lido aquilo em outro lugar.
   Fomos às estantes, tirámos alguns livros, mexemos, remexemos, e tornámos a remexer. Confirmámos!
   Aqueles textos, sendo ligeiramente modificados, foram usados dois anos depois no livro do saudoso amigo, que em paz descanse, Hermano Teodoro, intitulado “Caldeiras da Ribeira Grande (edição do Museu da Ribeira Grande/2003).
   Com um formato de 15 por 21 centímetros, é recheado com cinquenta páginas e contém um bom número de gravuras, de onde ressaltam lindas fotografias.
   Quanto aos textos que justificam a publicação, só temos a dizer que são muito informativos, e que até aos nossos dias nunca vimos algo que se lhe possa comparar no que diz respeito ao gracioso Vale.
   No seu todo, é o princípio de um tema a aprofundar, como esclarecia a extensão do título quando o trabalho foi publicado no jornal. Dois anos depois, no livro, o próprio autor justifica a mesma teoria, nas palavras que usou “em jeito de introdução”.
   Para concluir o que foi dito, só temos a acrescentar que o pior está feito. Daqueles alicerces podemos fabricar paredes e construir pontes.
   De Caldeiras ao centro, que tal uma ligação do Monte Escuro às Lombadas, delas à Fajã do Redondo, com as Lágrimas no caminho, seguindo o rasto da Luz e descendo ao Salto do Cabrito, fazendo da Ribeira do Teixeira um trilho para a Mãe d’Água, a modo de nos conduzir à Canada da Mina, que por sua vez poderá levar consigo um pouco da Tondela, para que entrando no Caminho Novo haja opção de descer às Gramas. Por dois motivos: um copinho de vinho (quartilho) nas Gramas de Baixo, ou um litro de água gasosa nas Gramas de Cima.
   Acreditem que esta água gasosa das Gramas é bem melhor do que a férrea, à entrada das Caldeiras. Não tem tanto gás como a das Lombadas, mas podemos compará-la à do Salto do Cabrito.
   A única água da zona que não pode entrar nestas comparações é a das Lágrimas, lá para o lado da barragem. Porque bebida de dois ou três copos improvisados com folhas de conteira, derruba as maiores sedes que por ali passam. Tanto da gruta choradeira, como da fonte do seu pilar.
   Mas, afinal, esta coisa de ir às Caldeiras e não cozer uma maçaroca de milho nas suas águas ferventes, é a mesma coisa de que ir à igreja e não ver o sacristão. Por isso, durante a caminhada àquele lugar, a rapaziada do nosso tempo sempre entrava numa terra, nesta altura do ano, em que o milho se apronta para secar, a modos de com ele se fazer farinha; e todos dali saiam contentes, com a maçaroca na mão, se não fossem surpreendidos pelo dono, ou por algum cão de guarda.
   Chegando às Caldeiras, o milho era posto a cozer nas pequenas poças ferventes, ao redor da caldeira grande, para ser comido dali a uma hora e tal, em jeito de merenda campestre.
   Este vale paradisíaco, como todos sabem, tem sido um ponto de referência da Ribeira Grande, e em grande relevo faz parte da sua história.
   No século XVI, as caldeiras, em si, eram conhecidas por “bocas do Purgatório”, por não serem tão medonhas como as das Furnas, então designadas de “bocas do Inferno”.
   Por sua vez, a poente, a referência da Caldeira Velha, de aspeto monstruoso, não nos parece ter sido colocada em nenhuma das categorias apontadas, sendo simplesmente divulgada como caldeira do lugar das Pedras Brancas, de onde também se tirou alguma pedra hume.
   Foi precisamente com o fabrico da pedra hume, que o lugar das Caldeiras foi rapidamente divulgado em todo o território português, e além fronteiras.
   Logo a seguir foi a fama das águas miraculosas que mantiveram no mapa o seu lugar de destaque, chegando mesmo a ser transportadas para a Vila da Ribeira Grande e para a Cidade de Ponta Delgada, para curar certas enfermidades.
   Depois alguém achou que com os longos transportes os milagres das curas perdiam-se pelo caminho. Por isso, as Caldeiras passaram a ser mais visitadas, e os banhos tomados no próprio local das nascentes.
   Desviando-nos de todos os pormenores que dignificam  as fontes de saúde e os ares saudáveis do Vale das Caldeiras, só temos a acrescentar que a casa das termas (que levou um toque de um automóvel na passada quarta-feira, 10 de agosto, danificando parte do seu alpendre), foi inaugurada e aberta ao público em 1811, e consta que no decorrer do século dezanove o vale foi visitado por muitos estrangeiros notáveis, por causa das suas águas milagrosas.
   No limiar do século vinte as Caldeiras da Ribeira Grande começaram a transformar-se em colónia de férias de pessoas abastadas. Diríamos: de gente fina e de bom gosto.
   Segundo anotou Hermano Teodoro, pelos registos de propriedades da primeira metade da centúria, nota-se que a maioria dos proprietários das casas ajardinadas daquela zona não era da Ribeira Grande. Leva-nos a crer que os proprietários seriam de diferentes pontos da ilha, com mais incidência, claro está, da cidade de Ponta Delgada. Mas o que interessa é que, ali se formou uma elite social de requinte.
   Quando utilizavam o vale, durante o verão, organizavam jogos, batalhas de flores, serões dançantes, etc. Como se isso não bastasse, “criaram em 1896 uma assembleia, a Assembleia Artística das Caldeiras, cujo objetivo máximo visava cultivar a música e outras artes liberais e também proporcionar aos sócios e suas famílias, reuniões dançantes, musicais, jogos e outras diversões análogas no Vale das Caldeiras, Concelho da Ribeira Grande.”
   Pouco antes dos anos quarenta do século vinte, as atividades da “Gente Fina das Caldeiras” começou rarear. Segundo testemunho de Álvaro Temudo, que foi um grande frequentador do vale, desde criança, porque seus pais eram lá proprietários de uma bonita residência, “na década de quarenta do século passado a Assembleia já não tinha qualquer atividade”.
   De acordo com Hermano Teodoro, as fontes de saúde do Vale das Caldeiras, tais como: águas termais, naturais e minerais; o seu ar puro, e o próprio sossego do lugar, contribuíram para que o seu padroado fosse entregue a Nossa Senhora da Saúde.
   No frontispício da atual ermida pode ler-se a data de 1850, e reza a sua história que foi mandada construir por Dona Isabel Margarida Botelho, seus familiares, e outras pessoas com propriedades ali, no Vale.
   Diziam, então, que as romarias à Senhora da Saúde das Caldeiras da Ribeira Grande foram iniciadas por Frei José da Purificação, da extinta Ordem Terceira. É bom lembrar que os frades utilizavam muito as águas termais para curar suas “enfermidades”. Foram extintas as ordens, mas os banhos não foram proibidos. Simplesmente, por si, entraram no roteiro das Romarias à Senhora da Saúde.
   A Ermida das Caldeiras, decerto começou a servir os moradores do Vale com, pelo menos, uma missa dominical; e durante a semana, como um lugar de oração diária.
   Do dia 15 de Agosto, passado nas Caldeiras e festejando a sua padroeira, muita gente da nossa geração deve ter histórias lindas para contar. Nós também temos. Mas para não nos desviar-mos das notas de Hermano Teodoro, prosseguimos dizendo que Álvaro Temudo, que em 2003 tinha 72 anos, viveu por muitos anos as festas de 15 de Agosto, “onde a afluência de residentes da ex-Vila era grande. No Vale, para além dos momentos de religiosidade, a missa na ermida, a procissão no seu interior, os festeiros espalhavam-se pelas matas em seu redor, usufruindo de piqueniques coloridos.”
   Octávio de Chaves Teixeira, em agosto de 2001 afirmou que era do tempo em que, no dia da Senhora da Saúde, só se celebrava missa em seu louvor, tendo servido como sacristão em alguns daqueles atos solenes.
   A procissão de 15 de Agosto foi iniciada pelo sacristão da Matriz, Manuel da Costa, que também era proprietário de uma bonita residência no Vale, algures na década de cinquenta do século XX.
   Um aspeto da festa de 2003 mostra-nos que Maria das Mercês Berquó de Aguiar Viveiros, de 72 anos, e algumas outras pessoas frequentadoras do Vale, “nomeadamente as da família Vaz do Rego, é que asseguram a Festa em honra da Senhora da Saúde, promovendo um bazar, na casa da Assembleia, coisa que tem várias décadas, cuja receita reverte a favor da manutenção da Ermida e até mesmo daquela casa.”
   No tempo da nossa meninice, à primeira claridade do dia, pouco depois das cinco, já ranchos organizados marchavam da Ribeira Grande em direção às Caldeiras. Lá chegando, instalavam-se nas vastas áreas verdes, colocando mantas no chão, fazendo piqueniques de dia inteiro, até à hora da procissão.
   Os mais novos caminhavam até nascente das Lágrimas, e à represa da luz, onde os rapazes piscavam o olho às raparigas namoradeiras; e iam tomar banho, fazendo-se espertos, a dar nas vistas, saltando da muralha da água, à moda de Tarzan.
   Para ficar por aqui, porque a crónica já vai longa, mais umas lembranças do nosso vizinho Álvaro Temudo, cuja mãe, Sra. Micaela, vinha todos os anos à nossa porta solicitar-nos um prémio para o bazar da Senhora da Saúde:
   “Quando tinha 8 ou 9 anos, aos Domingos, depois da missa, preparavam-se carros de bois e carroças, onde nos eixos se amarravam os farnéis; ia-se cantando por aí acima; parava-se junto da água férrea; bebia-se qualquer coisa; mais acima, nas matas, ou numa pastagem ali ao lado, estendiam-se os capachos e as mantas e comia-se qualquer coisa; à tarde, depois do almoço, preparavam-se umas canas-da-índia [bambu] e novelões [hortências], enfeitando-se as carroças para o regresso. Algumas pessoas levavam guitarras, onde havia cantadelas. Eram passeios lembrados 15 dias antes e 15 dias depois”.
   Curiosamente, esta nota bem se enquadra nas lembranças:
   Na terça-feira do Senhor Salvador do Mundo, antigamente, o povo da Ribeirinha também se deslocava às Caldeiras para  “roer os ossos”. Ou seja: “Algumas famílias iam para as Caldeiras com o resto que havia da festa”, assevera Álvaro Temudo.
   Por isso não nos admira nada o facto do ribeirinho poeta, Laureano Almeida, cantar às Caldeiras com alma e coração. No seu livro “Ao Som do Búzio”, editado por Letras Lavadas, publicado em fevereiro de 2019, podemos ler cinco poemas ao Vale das Caldeiras dedicados. Um deles está gravado em azulejo na parede frontal do edifício das termas, assinalando o seu segundo centenário.
   O descerramento da placa efetuou-se em 1 de setembro de 2012, quando o edifício foi reinaugurado, após a conclusão de obras de remodelação. A esta cerimónia tivemos a honra e o privilégio de assistir, sendo a primeira vez que nos cruzámos com o Sr. Laureano. Eis o poema:

Oh! lindo vale das Caldeiras,
Das boas-noites e conteiras,
Água fervendo em cachão,
De frondosos arvoredos,
Lágrimas com seus segredos
E fumos saindo do chão.
Linda moira encantada,
És como joia engastada,
Mesmo ao cimo dos montes,
Ouvem-se muitos rumores,
Hinos, cânticos de amores,
Por águas, bicas e fontes.
E fidalguia de brio,
No disperso casario,
Veraneia em quietude,
No alto linda capela,
Ciosa tem dentro dela
A Senhora da Saúde.

Fall River, Massachusetts, 11 de Agosto de 2022

por Alfredo da Ponte, nos EUA *

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