Diário dos Açores

No tempo em que se escrevia e recebia cartas

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Canto da Maia e Aníbel Cymbron Barbosa

As cartas deixaram de ser troca de mensagens e de ideias entre as pessoas. A marca indelével da escrita que o azul da tinta deixava no papel, e a caligrafia que a acompanhava eram um atestado da personalidade de quem as escrevia. Espécie de bilhete de identidade, ou mostra do seu ADN, a mão que se debruçava sobre o papel (a carta), trazia a nervura do momento e a sinceridade ou não, de quem escrevia. Pela carta e pela escrita se podia conhecer uma pessoa, quer chegada ou distante, no parentesco ou na amizade.
Os carteiros que as traziam e que conheciam o rosto e a voz do destinatário, nos idos anos sessenta do século passado, batiam à porta e a carta era recebida em mão, e nesse acto, de entrega, havia sempre uma troca de palavras amáveis.
Recordo uma amiga, que nesse tempo, tinha ido a Lisboa, escrevendo uma carta à mãe, no envelope escrevera em letras garrafais e redondas: ‘’Sr. carteiro, se a minha mãe não estiver em casa, deixe a carta à vizinha da frente’’.
É certo que a vida era mais pausada. O entretenimento era pouco, não havia televisão ou Internet, cada um procurava ocupar o tempo ouvindo as célebres peças teatrais no rádio, jogando a canasta ou a sueca, e a rapaziada mais nova não sofria de stress, pois galgava muros, tomava banhos, lutava entre si, e todas as mais tropelias que a idade lhes permitia, e se passavam as marcas, os pais admoestavam-os com um simples puxão de orelhas, quando não com umas valentes palmadas no ‘’traseiro’’. Nunca isso os traumatizou, tão pouco era necessário  levá-los ao psicólogo...
Isto vem a propósito de, há dias, em conversa com Manuela Cymbron Barbosa, me ter ela dito que tinha em seu poder correspondência do escultor Ernesto Canto da Maia dirigida a seu pai, Aníbal Cymbron Barbosa, entre os anos 50 e 70.
Deu-me a ler, autorizando-me a usá-las, apenas sete cartas e um postal. Duas escritas em francês, sendo a primeira de sua mulher Vera Pouritz, escrita a bordo do navio Lima, e a segunda, datada de Toulouse a 1 de Junho de 1959.
Uma outra, a terceira, é de 18 de Março de 1958, e ainda outras duas, a quarta e a quinta, com as datas de 8 de Dezembro de 1961 e de 20 de Maio de 1962.
As restantes, sexta e sétima, não estão encabeçadas por quaisquer datas.
Quanto ao postal, também não está datado.
Como a memória do homem é ingrata e muito fácilmente esquece aqueles outros homens que dedicaram ou tiveram um percurso de vida que deve ser recordado, importa não olvidar o Dr. Aníbal Cymbron Barbosa (3.11.1913-3.1.1980), que ‘’foi professor e director da Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada, publicista, jornalista e notável pedagogo e intelectual, com obra publicada sobre temáticas de educação e biografia’’, e também director do jornal Açores, tendo-lhe sucedido o jornalista Gustavo Moura.
“Foi agraciado com os graus de Oficial (27 de julho de 1961) e Comendador (2 de julho de 1969) da Ordem da Instrução Pública’’, tendo também sido Vice-Presidente do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Há obra sua publicada e ‘“colaboração dispersa por vários periódicos’’.
Foi este homem que manteve uma longa e fraternal amizade com o escultor Canto da Maia (15.5.1890-5.4.1981), que as cartas que lhe foram enviadas atestam.
Numa delas, Canto da Maia dirigindo-se a Aníbal Cymbron Barbosa, diz-lhe: ‘’ Nós somos primos num grau muito afastado mas eu considero-o como um irmão. É-me extremamente agradável a convivência  e a cumplicidade das nossas relações. Ter confiança e contar com as pessoas amigas é um conforto moral e um prazer espiritual, e de sentir afinidades e compreensão nas pessoas com quem estamos em contacto’’.
Nessa carta, Canto da Maia queixa-se do seu quotidiano: ‘’sobrecarga e ainda mais as minhas tarefas das Feteiras e Lomba da Maia. Até ao último dia tive mestres’’. E lamuriento: ‘’Nos poucos dias que lá estive apanhei no plantio um cavalo e uma cabra, que tive que multar para dar exemplo’’, também ‘’complicações com os rendeiros’’, ‘’requerimentos na polícia por causa de resolver e da espingarda e na secção da justiça  de tratar de (…) do cavalo e da cabra’’.
De partida para o Continente, e por não ter podido despedir-se de Cymbron Barbosa, escreve: ‘
“Estava tão abalado que: ‘“na segunda-feira estava extremamente cansado e só tinha dormido 4 horas’’, e desculpa-se: ‘’poderia ter feito um esforço e teria tido uns minutos para ir ao fim da tarde até à Rua Bensaúde mas faltou-me a coragem e contando com a sua bondade e indulgencia esperei que me perdoassem’’.
A vida do escultor não era só esculpir, tinha a parte aborrecida, da administração da sua casa.
Em 18 de Março de 1958, escreve:
‘’ Quando aí estamos  os Primos não descansam de nos fazer gentilezas e recebem-nos com tanta franqueza e simplicidade  que nos penetra no coração. É uma grande coisa  saber  que numa casa nos abrem as portas, não só materiais mas do coração e da alma. Nós todos temos pela sua Família muita estima e reconhecimento’’.
E, porque se demorava a escrever: ‘’O meu silêncio foi longo mas sou escultor e não sei modelar as frazes (sic) como o barro, quando tenho de exteriorizar  o que sinto me é difícil e complicado. Pensamos muitas vezes  nas horas em que passamos juntos, a Maria e Violante devido à atmosfera tão acolhedora de toda a sua Família, adoram agora a Ilha’’.
E acrescenta poeticamente: ‘’ Aqui este ano a primavera  anunciou-se  muito cedo; de repente  arrependeu-se, o frio voltou mais forte do que no inverno, o céu encheu-se de farrapos  brancos e as árvores  e arbustos desfolhados cobriram  da vestação dos contos de fadas’’.
E acrescenta:
‘’Paris é um mundo de cousas interessantíssimas que se acumula todos os dias. Eu só a poucas tenho ido. Assisti a algumas peças de teatro e cinema, a maior parte dos meus dias passam-se a trabalhar, concertei  2 estátuas  partidas e patinei uma. Uma sereia que fiz já há anos e que a expressão  da cara não me agradava, fiz-lhe uma nova cara e quando tudo estiver cosido ligo tudo com cimento. Pintei o meu quarto da cama  trabalho estupido e aborrecido’’. E acaba ‘’a Maria nos últimos tempos teve más notas porem ameaçada de não ir no verão a Ilha’’.
Numa das cartas escrita em francês, relata as suas andanças pela noite: ‘’Nous avons vu les merveilleuses danses des Causaques du Don avec leurs sauts prodigieux et leur entrain fou, été à la Comédie  Française voir le Cid et à l’Opéra voir Faust, assisté au Festival du Filme Soviétque dont deux films étaient intéressants et sans propagand… vu les ballets des Philippines au Théâtre des Nations et des danses folkloriques Indoues, des admirables fims - : Ivan le Terrible, puis d’Ingamar Bergman: ‘’Les Fraises Sauvages’’ et ‘’Le Settiéme Sceau’’.
O curioso desta carta, é notar o dia a dia do escultor, e as minudências que o ocupava.
Também havia o rumor da vida política, como nos diz:
Referências ao célebre Maio de 68: ‘’ Aqui em Paris a vida continua  como se estivéssemos em cima de um vulcão que todos os dias rebenta aqui ou ali. Hontem rebentou uma bomba plastica em casa do André Malraux (3.11.1901-23.11.1976) que habita do outro lado da Avenida  felizmente não tivemos nenhum estrago. A Violante mora no 4.º andar, n.º 2 Robert Shuman (homem político) tem um appartment, ele criticou as O.A.S.. Tenho receio que um dia aconteça o mesmo e a Violante também sofra. Esperando que esta atmosfera  se calme os nossos dias vão seguindo  entre interesses espirituais e de trabalhos caseiros’’.
Canto da Maia também elucida  ‘’da mudança de voltagem tive de refazer a instalação eléctrica e fiz outros trabalhos prosaicos, mas que é útil e económico  conhece-los  onde os operários se fazem pagar exageradamente’’.
Na mesma carta: ‘’Penso começar brevemente outros estudos para o monumento d’Antero. Já escrivi ao Cortes (Poeta Armando Côrtes-Rodrigues) 2 vezes mas não tive nenhuma resposta’’.
Em 8 de Dezembro de 1961, faz algumas observações relativamente ao ambiente social da ilha: ‘’Felizmente que encontrei a sua casa e devido a si um pequeno numero de pessoas, onde me sinto à vontade. No nosso meio de Ponta Delgada onde a naturalidade é considerada de mau gosto ou mesmo de má educação, faz bem e dá conforto uma atmosfera mais livre’’.
Era natural que Canto da Maia, vindo de Paris, onde o contacto humano e intelectual era muito mais desinibido, do que aquele que encontrava na sua ilha, se sentisse bem melhor na companhia de Aníbal Cymbron Barbosa, porque este era um homem que tinha tido sempre contactos com grandes figuras de intelectuais, para além de uma vasta cultura.
 Estivera em Inglaterra com uma bolsa que o Brithis Council lhe concedeu para frequentar o Instituto de Educação e do University College, tendo aí tido o privilégio, como o próprio escreveu, de frequentar lugares que também o foram por ‘’Robert Southey, Ruskin, Coleridge, ‘’esse admirável poeta’’, e sobretudo William Woodsworth, grande poeta e pedagogo.
Na América, em 1946, onde esteve, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura, Aníbal Cymbron conheceu outras figuras, como o Professor Francis Millet Rogers, este descendente de portugueses, que o acompanhou numa visita a Harvard,
Em 20 de Maio de 1962, Canto da Maia informa Aníbal Cymbron Barbosa: ‘’Devo partir muito brevemente porque o pintor António Soares (1894-1978) me convidou para êxpor com o Almada Negreiros (7-4-1893-15-7.1970) e outros amigos no Porto. Devo chegar à Ilha a 12 no Funchal’’.
Pena não haver muito mais cartas que nos trouxesse  mais informação sobre a vida e as rotinas de Canto da Maia, quer em França, quer nos Açores.
Socorrendo-me das palavras do Dr. Aníbal Cymbron Barbosa, numa homenagem que prestou ao escultor:
‘’Conservo, do seu convívio de longos anos, a mais grata das recordações e sempre admirei a sua coerência”.
Possuía uma impressionante humildade  e era dotado de adorável simplicidade, o que proporcionava, a todos os que o procuravam, aquele bem-estar que só os eleitos sabem brotar à sua volta’’.
E acrescento, que eles – Canto da Maia e Aníbal Cymbron Barbosa -, ambos souberam honrar o seu tempo, e a nós, cabe o dever de honrar e exaltar a sua memória.
Cartas são tesouros de preciosa informação. Infelizmente, na volatilidade do tempo, os arquivos familiares são muitas das vezes desprezados e deitados ao lixo,  quando se fazem partilhas ou se desfazem as casas. Felizmente, que estas foram salvas do olvido, pelo carinho que a filha de Aníbal Cymbron Barbosa, Manuela Bettencourt Amaral Barbosa (Nélinha Cymbron) -  cuidadosamente soube preservar esta herança deixada à sua conta por seu Pai.

Victor de Lima Meireles *

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