Diário dos Açores

Kuwait na véspera da invasão de Saddam Hussein

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Recordo estar no Kuwait a 31 julho 1990, exatamente dois dias antes da invasão iraquiana de Saddam Hussein ao Kuwait, na primeira tentativa de subjugar aquele pequeno emirado. Não o fiz voluntariamente, mas devido a uma avaria no avião da UTA (transportadora aérea criada em 1963 para as províncias ultramarinas francesas, absorvida pela Air France em 1992) que me trouxera da Nova Caledónia via Sidney.

James Colnett avistou em 1774, terra desconhecida, a bordo o navegador e explorador  James Cook  batizou-a como «Nova Caledónia» em homenagem à Escócia. A costa teria lembrado essa região e Caledónia é em latim antigo, a Escócia. Em 1788, a expedição de La Pérouse fez o reconhecimento da costa ocidental, a bordo do l’Astrolabe e do La Boussole, antes do um naufrágio no recife Vanikoro, Ilhas Salomão. Em 1793, o Contra-Almirante francês Antoine Bruny D’Entrecasteaux, que partiu em 1791 a pedido de Luís XVI para encontrar La Perouse, passa ao largo da Nova Caledónia, reconhece a costa oeste da Grande Terre e incluiu as Ilhas Lealdade. No entanto, a descoberta é atribuída a Jules Dumont d’Urville, em 1827, que primeiro que as localizou com precisão. No final do século XIX e início do século XX tentativas de colonização fracassam. Em 1931, um grupo de Kanakas era exposto como canibais dentro de caixas, no jardim do Bosque de Bolonha, na Exposição Colonial Internacional  de Paris. Na 2ª Guerra Mundial, 1940, a Nova Caledónia apoia a França e tornou-se em março 1942 numa importante base norte-americana. Nouméa é a capital, fundada com o nome de Port-de-France em 1854 pelo Capitão Tardy de Montravel. O território registou importante crescimento económico graças à exploração do níquel, terceiro maior produtor do mundo, enquanto a França a tornava em colónia penal. Depois da guerra, a França designa-a  território ultramarino em 1956. O ponto alto de tensões entre opositores e partidários da independência surge com a rebelião generalizada durante o período dos «Eventos» (1984-1988). A violência culminou em 1988 com a tomada de reféns em Ouvéa. Depois dos Acordos de Matignon (1988), previa-se um estatuto transitório de 10 anos até um referendo sobre a autodeterminação. Este, complementado pelo Acordo de Nouméa, maio 1998, previa uma forte autonomia. O último referendo sobre o futuro institucional (ou manutenção da autonomia na República Francesa) foi rejeitado em 2019.

Os voos entre a possessão ultramarina da Nova Caledónia são frequentados por funcionários públicos franceses que regressam ao continente europeu e vice-versa. Trata-se de um dos locais mais caros do Pacífico, tudo é importado de França, tem-se a sensação de se estar em Paris na maior parte das lojas, mas com atendimento pelos habitantes das ilhas de Ouvéa e Futuna que já constituem a maioria dos nativos locais: 45% Melanésios (Kanakas) e 35% Europeus (Franceses) com Polinésios nas ilhas mais afastadas. Os Europeus concentram-se no sul, sendo Francês a língua oficial além de dialetos melanésios e polinésios numa mistura de 60% de católicos e 30% de protestantes. O turismo é pouco e desproporcionalmente caro ao contrário doutros países do Pacífico Sul sendo preferido por franceses.
Estava a bordo dum trimotor McDonnell Douglas DC-10 acabado de levantar voo do Omã (Emirados Árabes Unidos) quando se regista a implosão do motor do lado esquerdo. A maior parte dos passageiros fica sobressaltada e durante largos momentos não há instruções, apenas um curto anúncio em francês, a falar dum pequeno (!!!) problema técnico. Outros passageiros anglófonos abordam-me a perguntar o que se passa. Ficam preocupados ao sobrevoarem o imenso deserto de Omã (parte do enormíssimo deserto da Arábia), onde só se viam dunas e antigos depósitos de águas totalmente secos.
A imagem era aterradora pois só havíamos começado a subida há 20 minutos, mas estávamos afastados do centro urbano mais próximo. Cá em baixo dunas e mais dunas, deserto e mais deserto, sem vivalma, apenas velhos poços secos. Os restantes dois motores obedeceram às ordens do piloto e lentamente o avião começou a subir mais e a descrever um enorme círculo para a esquerda, enquanto tentava voltar para trás. Acabou por completar o círculo ganhando mais altitude e o piloto, avisou que iríamos para Kuwait City.
Ali chegamos, sem mais incidentes, numa cena mais própria dum filme de terrorismo internacional. Fomos mandados para o setor militar do aeroporto, onde tropas armadas rodearam o avião e fortes medidas de segurança eram impostas, antes de serem autorizados a desembarcar. Saímos todos, por fim, levados através duma avenida com poucos prédios (hoje parece a baixa de Manhattan), que sulcava o deserto, para um luxuoso Intercontinental Hotel onde ficamos alojados. Era de manhã cedo e os bares do Hotel só abriam pelas 11 horas.
Eu falava com um pequeno grupo de expatriados franceses que regressavam a França, éramos quatro kafires (infiéis) franceses e duas francesas, uma delas, cinquentona ou mais. Íamos a entrar para o bar para dessedentar, pois apesar do ar condicionado a temperatura exterior rondava 46º C àquela hora matinal, quando fomos impedidos por um funcionário do hotel que disse que ainda não poderíamos entrar.
Desembocava, então, no bar um grupo ruidoso de uns dez a doze nativos, com o seu vestuário tradicional masculino, o “thoub” branco, uma peça única e comprida. Na cabeça usavam a “ghutra” ou keffiyeh enquanto o “shemagh” é principalmente usado em ambientes religiosos. Não havia nesse grupo nenhuma mulher com ou sem chador (véu islâmico), decorrida meia hora ou mais, (nós) os infiéis fomos autorizados a beber. Para espanto constatamos que os árabes estavam a beber alegremente álcool, o que não é permitido, de acordo com o Corão.
A conversa parou, enquanto miravam, de alto a baixo, os estrangeiros e em especial as duas francesas, imodestamente vestidas para os padrões locais. Começaram a ouvir-se o que se presumia, piropos em árabe ou em língua presumivelmente inglesa. A atmosfera era de cortar à faca. Tomadas as nossas bebidas e como o ambiente era hostil e ameaçador, saímos do bar para o enormíssimo átrio do hotel, ver as montras e conversar.
Falava eu com Michel, programador de computação do governo francês na Nova Caledónia, estávamos sentados num cadeirão forrado a ouro e veludo plantado no átrio do tamanho de um campo de futebol. Não reparamos, que mesmo em frente, a 15-20 metros, estava um grupo constituído por três homens, duas mulheres cobertas com luxuosa jilbab ou jilbaab e a cara com um niqb, esse véu que cobre na totalidade as faces, deixando antever os olhos e faz parte do hijāb ou burca. Convém acrescentar uma nota para os que nunca andaram por aqueles lados do Oriente do Meio.
Manda a tradição islâmica que o contacto físico entre sexos opostos seja bastante rigoroso. A troca de apertos de mãos é permitida só dentro de uma relação lícita ou num vínculo forte de parentesco. Pelas normas de cortesia se uma pessoa do sexo oposto lhe estender a mão, deve aceitar o cumprimento. Em meios diplomáticos, são permitidos cumprimentos entre homens e mulheres. As mulheres devem ser cumprimentadas verbalmente, a não ser que tomem a iniciativa e ofereçam o braço para o cumprimento. A mão esquerda é sempre considerada “suja”, pois é utilizada na higiene pessoal, na tradição islâmica. Deve evitar-se cumprimentar, gesticular, dar e receber presentes e cartões com a esquerda. Em hipótese alguma se deve gesticular balançando as mãos fechadas, é considerado um gesto hostil. Se usa força contra os inimigos, quando balança as mãos contra alguém com força e potência, pode ser interpretado como se essa pessoa fosse um inimigo. Nunca se devem cruzar as pernas, mostrar a sola do sapato é um insolente insulto, é a parte mais baixa do corpo e está em contacto direto com o chão sendo considerada impura.
Estávamos, Michel e eu, alheios de tudo e de todos, em amena galhofa discutindo as virtudes de termos uma mulher no mundo ocidental que ninguém pudesse olhar ou cobiçar. Provavelmente gesticulando, possivelmente mostrando as impuras solas dos sapatos, ténis ou botas que calçavam, sem nos apercebermos que estávamos quase sós no enorme átrio. Sabíamos que não se podia olhar diretamente para a mulher árabe, ao contrário do que é normal no Ocidente. De repente, pelo canto do olho, apercebi-me que uma imponente figura em traje completo de xeque se levanta e anda metade dos 20 metros que separavam os sofás. Sem nos desconcertarmos, subitamente tomados de pânico ou mero medo, pela segunda vez nessa manhã, a uma frase de alerta minha, levantamo-nos a conversar como se nada fosse, antes que o árabe se aproximasse. Distanciamo-nos rapidamente e não fomos seguidos conforme verificamos ao subir as escadas para outro andar.
 Ficamos para o resto das nossas vidas com dúvidas se o árabe se ia dirigir a nós, a acusar-nos de um qualquer crime, como ter olhado para o monte de tecido com dois pontos negros movediços na pequena abertura da parte superior do vestido. Poderia o árabe ter-se sentido insultado com a lamacenta sola dos sapatos, cheia de areia árabe, ou, teria apenas constatado que o seu Cartier ou Rolex dourado e cravejado de diamantes de 50 mil dólares tinha parado e apenas ia perguntar as horas. Fosse o que fosse, mudamos rapidamente de piso no hotel. Dirigimo-nos para uma zona onde estivessem mais dos, quase, duzentos ocidentais que se encontravam ali exilados tecnicamente enquanto o avião era reparado. Toda aquela atmosfera, mesmo num hotel daqueles era aterrorizadora, pois os árabes eram sempre servidos primeiro e só depois os estrangeiros, fosse para o que fosse, mesmo que se tratasse de se sentarem numa mesa dum dos bares do hotel.
Senti mais medo do que uns anos antes, em Carachi (Paquistão) quando tive de sair do avião devido a uma tempestade de areia. O quadrimotor tentara arrancar, mas chegara ao fim da pista com esta coberta de areia. Rapidamente saímos e fomos abrigar-nos no terminal. Do dia se fez noite e a pista ficou com mais de dois metros de areia. O átrio do terminal parecia uma duna saariana. Horas na escuridão. Por fim, amainara, os bulldozers vieram limpar a pista e o avião partira. Da janela do hotel, no Kuwait, via-se o deserto ciclicamente cortado por um autocarro ou uma viatura de alta cilindrada topo de gama. A neblina própria do calor e humidade dava a tonalidade de amarelo sujo a tudo o que circundava o hotel. Criavam-se miragens e a mente toldava-se enublada. Dois dias depois seria o terror, a morte, a pilhagem e a destruição das forças iraquianas de Saddam Hussein no hotel e em todo o Kuwait. Mais uma vez o mundo perdera a sua inocência.

Chrys Chrystello*

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