Diário dos Açores

Amizade Nascente

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À Ana Luiza Amaral
(In memoriam)


Partiu a poeta Ana Luísa Amaral, voz expoente da poesia contemporânea de Portugal, do mundo Ibérico, do lado de cá do Atlântico. Enfim, o mundo literário está de luto. Recebi a notícia da sua morte ainda na sexta-feira, 5 de agosto. Diz um dito popular que a má notícia chega voando...Fiquei perplexa! Não podia acreditar que aquela Mulher forte, de causas e sentimentos largos, se despediu silenciosa depois de uma longa luta pela vida e cheia de esperança de vencer. Guerreira até o fim. Única no jeito todo seu de ser e de trazer a palavra à vida, de parir o verso. No seu jeito de ser poeta e poema. Fabulosa autora, deixou-nos por legado uma obra de singular estética e uma paixão imensa pela palavra.Autora de mais de trinta livros – poesia, teatro, ficção, literatura infantil.
Conheci Ana Luísa em fevereiro de 2015 na Póvoa de Varzim, terra de Eça de Queiroz. Eu chegava “verdinha” naquelas andanças por uma cidade que, por uma semana, se transformava em livraria. Ana Luísa era um elo “maduro, rígido” daquelas Correntes d’Escritas, de livros e de amigos, parafraseando o escritor galego Carlos Quiroga. Sim, ela era uma das presenças assíduas no Encontro de Escritores de Expressão Ibérica Correntes d’ Escritas, tendo recebido o Prêmio Casino da Póvoa em 2007 pela obra “A Gênese do Amor”, Campo das Letras,2005.
Reporto-me aquele fevereiro de 2015, minha primeira vez na Póvoa e nas Correntes d’Escritas. Hora do almoço. Entrei no restaurante olhando as mesas a procura de uma cara conhecida. Numa sala menor, à esquerda de quem entra no “Zé das Letras”, estava Ana Luísa junto a um pequeno grupo de amigos. Olhou-me e disse: “senta-te aqui, vamos comer um cabrito! Com simpatia quebrou o gelo. Eu acabava de conhecer uma mulher admirável.Ao seu lado, no Zé das Letras, saboreei o melhor cabrito assado acompanhado de considerações sobre a maneira de fazer. Uma iguaria! Ignorava naquela altura que Ana Luísa gostava de cozinhar e o cabrito assado era sua especialidade. Guardo a lembrança de uma mulher de olhar arguto e tocante a poetar sobre o quotidiano, o amor, o feminino e seus estereótipos. Uma grande voz que se fez ouvir no empenhamento de tantas causas sociais, culturais e políticas.
De todos os lados, tenho lido manifestações de grande pesar por seu falecimento aos 66 anos na terra que tanto amava, Leça da Palmeira, e de onde namorava o mar. Todos, amigos, gente de seu convívio e admiradores, correram a botar sua palavra de pranto, de saudade e de homenagem.  O poeta poveiro José Alberto Postiga, a viver na Suiça, escreveu em rede social uma despedida terna, suave, sublime e reverente: “ recebo a notícia da tua morte longe de casa,/numa praia de areia fina/repleta de veraneantes ruidosos e felizes,/sem saberem que uma ode de ti/desmoronou o meu sorriso (...)/ assim, sem engenho nenhum: lágrimas sob o sol a pique,/ esplêndido, como a tua poesia.
Também resolvi riscar umas palavras sobre a Ana Luísa Amaral que conheci nas Correntes. Nunca lhe disse que gostava de ouvi-la, que apreciava a perspicácia e a sua sabedoria.Éramos conhecidas das Correntes. Melhor definir como “Nascente Amizade”, a mesma expressão que Ana Luísa escreveu ao assinar o livro de convidados na casa do escritor João de Melo (e Tita) em Madri. Queria  ter sido sua amiga!
Durante aFeira do Livro da Póvoa de Varzim, no Passeio Alegre, na última quarta-feira, teve lugar a uma sessão de leitura com textos de Ana Luísa Amaral com Raquel Patriarca e a Adélia Carvalho e com quem mais quisesse fazer parte. Estavam convidados leitores e amigos de Ana Luísa a participar nas leituras. Na margem de cá, à distância, desejei ter compartilhado da sentida homenagem...
Faço agora ao concluireste riscado com o  maravilhosopoema “As pequenas gavetas do Amor”, fazendo de conta que participei daquele especial momento no Passeio da Alegria da Póvoa:


Se for preciso, irei buscar um sol
para falar de nós:
ao ponto mais longínquo
do verso mais remoto que te fiz

Devagar, meu amor, se for preciso,
cobrirei este chão
de estrelas mais brilhantes
que a mais constelação,
para que as mãos depois sejam tão
brandas
como as desta tarde

Na memória mais funda guardarei
em pequenas gavetas
palavras e olhares, se for preciso:
tão minúsculos centros
de cheiros e sabores

Só não trarei o resto
da ternura em resto esta tarde,
que nem nos foi preciso:
no fundo do amor, tenho-a comigo.

quando a quiseres –


(Ana Luísa Amaral, in Imagias, Gótica, 2002)

Lélia Pereira Nunes *

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