Diário dos Açores

O vinho da nossa alegria

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Em anos passados, por esta altura, notava-se uma azáfama pelos currais de vinha, levantando as cepas para permitir o amadurecimento dos cachos de uva.
Pelas bandas de leste da ilha do Pico, as vinhas estão verdejantes, mas não escondem das rolas e dos pombos torcazes o alimento de que eles tanto gostam.
Dizem os entendidos que o mau tempo na primavera deu cabo da floração e o resultado é a fraca produção da uva Isabela e, consequentemente, uma drástica redução do popular e saboroso vinho de cheiro do Pico.
Os que ainda se dedicam a esta produção são cada vez menos. Falta, sobretudo, mão-de-obra para trabalhar os currais de biscoito, pois há tratamentos próprios para os quais não se inventou maquinaria adequada que minimize a dureza do amanho das vinhas.
Acresce, por outro lado, que nas jovens gerações houve uma mudança de hábitos alimentares, em favor da cerveja e de outras bebidas com menor teor alcoólico, pelo que é possível que, num futuro próximo, os antigos currais de vinha Isabela, sejam inundados por faias e incensos, pau branco, urze, louro e silvas e a antiga paisagem dos currais desapareça, impiedosamente.
Poucos já recordam os caminhos pedregosos e estreitos,por onde circulavam, no mês de agosto, cavalos e burros, conduzidos por homens de albarcas, chapéus de palha na cabeça, gastando forças para produzir vinho de cheiro para o ano inteiro. O arranjo dos caminhos sepultou as rilheiras cavadas na rocha pelos carros de bois que transportavam as pipas para os pequenos barcos que as carregavam junto dos penedos das baías.
Nesses tempos não havia com que comprar café e açúcar. O vinho era a bebida das refeições e o café era feito com o pó de fava torrada.
Épocas difíceis que levaram à emigração nos anos 50 do século passado para o Brasil e na década seguinte para os EUA e Canadá.
Já antes, situação idêntica acontecera nos séculos XVIII e XIX, após “um período de prosperidade para o vinho do Pico e para o Porto da Horta”1.
Então a lista de castas era diferente. A mais usada era o Verdelho, mas havia também a Alicante, Boal, Galego, Verdelho Valente ou Terrantez do Monte.
É significativa esta informação sobre a cidade da Horta prestada, em 1801 pelo sueco Gustave Hebbe: “Durante a guerra de 1793 a 1801 [resultante da Revolução Francesa], os ingleses fizeram no Faial grandes especulações mercantis. Uma casa opulenta da Londres tinha ali um comissário que comprava anualmente 5 mil pipas de vinho e as enviava às Antilhas e, sobretudo, à Martinica. Os americanos e os habitantes da Nova Escócia enviam madeiras e bacalhau e tomam como carga, no seu retorno, o vinho das ilhas”2.
Em 1871, o historiador faialense Silveira de Macedo afirmou que a ilha do Pico, nos anos de maior colheita, produzia em média, entre 12 a 15.000 pipas de vinho.
Tudo, porém, se alterou com a chegada do oídio em 1852-53. A doença atingiu as castas existentes, arrasou os campos de vinha e a economia foi fortemente abalada.
Sucederam-se maus anos agrícolas em 1857, 1858 e 1859, de tal modo graves “que puseram as ilhas do Faial, Pico e São Jorge sobre o negro espectro da fome (…) Os grandes proprietários e morgados do Faial e Pico assistiram à desvalorização das suas terras e à queda acentuada das suas rendas ”3.
Mais uma vez a saída foi a emigração para o Brasil e para os EUA.
As doenças da vinha, porém, não terminariam com o oídio.
Na década de 1880, surgiu a praga da filoxera e depois o míldio e a antracnose. As castas europeias quase desapareceram, tendo sido substituídas pela chamada uva americana ou Isabela. A sua introdução nos Açores aconteceu quando surgiu o oídium.
“Ela chegou – afirma Sousa - em inícios de 1854, tendo vindo para São Miguel incluída num grande     lote de plantas exóticas importadas por António Borges da Câmara Medeiros para melhorar os seus amplos jardins. Nos primeiros dez anos foi apenas tratada como uma planta     ornamental, servindo para cobrir as latadas dos parques micaelenses. A sua difusão foi feita     lentamente à medida que as castas europeias decaíam. Pela mesma década de 1850 chegaram uns pés de Isabela ao Faial, aos quais, durante os primeiros tempos, não foi, igualmente, dedicada qualquer atenção. A sua introdução, um pouco mais tardia no Pico deveu-se ao naufrágio de um navio francês que atirou à costa vários pés. Após alguns anos de desinteresse, a partir de 1856, esta     casta começaria a ser aqui cultivada por Manuel Maria da Terra Brum, barão da Alagoa,     substituindo, a pouco e pouco, o Verdelho.”
Dizem os entendidos que a introdução da cultura da vinha Isabela, ou de produtor direto, levou muito tempo.
Memo assim os picoenses não desistiram da cultura porque a ilha tinha e tem especiais condições edafoclimáticas. Apostaram na nova casta e passaram a produzir quantidades apreciáveis de vinho de cheiro, melhorando ao longo dos anos, a qualidade do produto final.
E se a ilha do Pico que, graças ao projeto bem sucedido da Paisagem da Cultura da Vinha, conheceu um dinamismo em parte comparável ao que ocorreu na segunda metade do século XX com a pesca do atum, a construção de traineiras e a indústria conserveira, é sinal de que os picoenses e os açorianos em geral são resilientes e não desistem de atingir patamares de uma vida digna e melhor.
Os novos vinhos do Pico, passados dois séculos, voltam a ser reconhecidos e recomendados. Oxalá a sua produção tenha êxito e durabilidade, como aconteceu nos séculos XVIII e XIX.
Aprendamos com a história pois ela é  “mestra da vida”.


1MENESES,Avelino de Freitas, “Os Açores nas Encruzilhadas de Setecentos” (1740-1770), 1994
2Paulo Silveira e Sousa (2005), «Para uma História da vinha e do vinho nos Açores (1750 - 1950)», Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. LXII, Angra do Heroísmo, pp. 57-159.
3idem


*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

José Gabriel Ávila*

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