Diário dos Açores

Projeto de autonomia e flexibilidade curricular (I)

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O Decreto-Lei n.º 55/2018 de 6 de julho, publicado em Diário da República a 6 de Julho de 2018, é um documento que integra vários elementos referentes ao Currículo e Desenvolvimento Curricular e define várias noções e conceitos que se reportam ao designado Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular. Este tipo de legislação designo-a de Textos Legislativos porque enquadram questões fundamentais do da Educação,  neste caso do currículo,  que superam um mera conceção instrumental, embora também o sejam em certos sentidos. Mas no fundo, enquadram conceitos não apenas operacionais mas também concetuais, sito é, que dão sentido ao que está a ser analisado, estudado e servem de orientação para as práticas pedagógicas, didáticas e curriculares.
Em Portugal, no seu todo, e nos Açores, igualmente, em sido produzida demasia legisladoem matéria de Educação e de Currículo, devia-se ir ao essencial, até para libertar as escolas, os professores e os alunos de uma série de projetos, uns muitas vezes sobrepostos e decalcados uns dos outros. Por exemplo, falar em Projeto Educativo de Escola, para onde se tem atirado muitos assuntos que não são relevantes, projetos curriculares de escola, projetos curriculares de turmas, currículos alternativos, etc, e isso numa altura em que também se procedeu à produção dos documentos com as “Aprendizagens Essenciais” –(re)definidas – cria em cada ano, em cada disciplina, dispersão – apesar da pretensão contrária - levando, uma vez mais, os professores a dispersarem-se sobre a noção – não chega a ser conceito – do que é essencial. Tudo isto no (pre)suposto de uma escola inclusiva, surgindo muitos equívocos. Nenhum aluno deve ser deixado à sua sorte mas muitas vezes a pretexto de democracia cai-se na demagogia, “todos têm de passar”, - e, de facto, todos têm o direito ao sucesso escolar mas têm o dever de fazer por isso. Temos de saber que escola queremos, - entre os nevoeiros das políticas educativas – e, de facto, queremos uma Escola para Todos, mas isto não deve significar desleixo na aprendizagem. Precisamos de uma escola inclusiva e democrática mas que seja promotora dos valores da qualidade, do mérito, do esforço, da dedicação, da entrega, do estudo, do trabalho, do trabalho escolar. Pasme-se. Há anos atrás no Estatuto do Aluno foi enunciado, como primeiro dever, o dever do aluno estudar. Mas passa pela cabeça de alguém que a maior dedicação do aluno não seja o de estudar?, integrado na pluridimensionalidade das atividades favoráveis ao crescimento integral. O professor ajuda, está lá para, com o seu saber-ser e saber fazer com que o aluno saiba, aprenda com afinco, com motivação, mas o professor não pode substituir o aluno na tarefa pessoal – também interpessoal – de estudar. Tem faltado exigência, de alto a baixo, no sistema educativo, em todos os níveis. Não podemos cair num currículo mole e de gelatina. O currículo tem de ser dinâmico e flexível mas não pode ser uma dispersão que, no fundo não seja nada. O currículo deve ter uma configuração, até isso é útil para o aluno, para saber localizar e identificar o que há a aprender. Mas todos sabemos que deve haver um “alinhamento curricular” entre o currículo formal, aprendido, experienciado e avaliado. Mas nem sempre é assim. Há vários alinhamentos curriculares, porque, como afirma o Professor Doutor Manuel Ferreira Patrício, de Saudosa Memória, o “saber é multivário” e “multiviário”, tem várias vias e processos e é de vários tipos, desde logo os saberes, os currículos – Curriculum Vitae – de que os professores e os alunos são portadores e devem ser potenciados pela escola e nas dinâmicas curriculares de ensino e aprendizagem.
Claro que a Escola – as Escolas – podem e devem ser instituições agentes de Projeto de Autonomia e Reflexibilidade curricular. Mas as escolas, embora concretas, são ainda abstrações, têm os seus órgãos e estruturas – desde logo a Assembleia de Escola – mas só são concretas e dinâmicas se dão voz às pessoas que nelas trabalham e participam, sem exceção. Toda a Pessoa que trabalha numa Escola tem uma Ideia, um propósito, uma sugestão para melhorar, em função, designadamente, do seu percurso e experiência, do seu curricular escolar. Mas o que é facto é que as escolas se encontram num emaranhado da burocracias e as pessoas acabam por ficar na sombra sem voz ativa. Considero que as estruturas das escolas deviam mudar. A escola é, também, uma instituição para a aprendizagem da democracia mas não para perda de tempo com democraticites. Sou a favor da existência do  Diretor de Escola e não do Presidente do Conselho Executivo, supostamente mais aparentemente numa estrutura democrática mas sem margens para responsabilização.
Não hesito em contar aqui uma situação que me marcou para sempre, como aluno, como professor, como investigador, deu-me de pensar. Estava eu, então, no 7ºano de escolaridade na Escola Secundária Domingos Rebelo. Sabemos como esta escola – pela qual também tenho muita consideração – levou muito tempo a reorganizar (por razões exógenas) os seus espaços físicos, entre os quais a imperiosa necessidade de um anfiteatro, que muitas vezes se compensou por carolice – e entrega – adequando o complexo desportivo para lá desenvolver atividades educativas e curriculares, como debates, como tive oportunidade de co-dinamizar no ano letivo de 1990/91. Mas voltemos ao tempo em que era estudante do 7ºano de escolaridade. Era o primeiro ano na escola. Vinha do CPTV dos Ginetes, onde se senti bem preparado em termos escolares. Era Diretor da Escola Secundária Domingos Rebelo o Professor Jorge Amaral, Pessoa de Caráter, de valores e muito bem formado. Via-se. As escolas tinham currículos formalmente uniformes mas havia já diversidade curricular. Acontece que o referido Diretor convocou professores e alunos para uma reunião de apresentação do ano escolar, ali, no complexo desportivo, improvisando o espaço, com cadeiras para o efeito. Os alunos estavam de pé. O que não deixava de dar uma leitura, mas sei que não intencional. Os meios eram escassos. O Diretor da Escola abriu a sessão, deu as boas vindas, traçou o ambiente que queria – em espírito democrático - e que, legitimamente e moralmente, exigia na e para a Escola para que tudo funcionasse bem. Apresentou todos os Professores, um a um, pelo seu nome, que se voltavam para os alunos, num face a face, disciplina a disciplina. E, logo ali, interiorizava-se um ambiente de escola onde todos seriam co-responsáveis e responsabilizados. Nunca mais me esqueço da atitude humana e vertical do Professor Jorge Amaral, que em muito excedia as suas capacidades técnicas, também reconhecidas. Era – foi – um verdadeiro líder humano e pedagógico. Mais tarde soube de outras dimensões essenciais da sua formação, como a frequência dos cursos de cristandade, em liberdade. Havia laicidade masRespeito pelos mais altos Valores humanos. Há muito tempo que desejava dar este testemunho público, que tem tudo a ver com a Escola e o Currículo, que se (re)faz. E em todo o ano – e nos anos seguintes – era uma Escola onde todos se respeitavam e estudavam. Havia Autoridade Moral, havia auctoritas. Lembro-me de muitas aulas, de muitos currículos, de muitos programas, de muitos manuais, muitos deles guardo com carinho e sobre eles penso escrever um dia. Afinal, ali não havia “currículo oculto”, que são as ditas aprendizagens indiretas, ali havia currículo à clara luz do dia que ilumina a consciência moral de cada estudante a ser e a crescer nas suas dimensões integrais. Neste meu Testemunho presto a minha Homenagem, como aluno e como Professor, ao Professor Jorge Amaral, de Saudosa Memória. Ficou no meu currículo.Só as Figuras de Referência são mobilizadoras e garante de verdadeiros projetos, projetos escolares, e, simultaneamente, projetos de vida. E logo numa altura em que, neste nosso tempo, estamos a falar em Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular. Há que fazer mais e melhor com a Autonomia que foi concedida às escolas. Mas não basta uma Autonomia concedida, é fundamental uma Autonomia de Ser, das pessoas e das instituições. É preciso pessoas de confiança, pessoas fiáveis e credíveis. Só essas são mobilizadoras de verdadeiros projetos, numa altura em que os currículos tendem a ser retalhados e recompostos por um movimento contrário de integração e de práticas interdisciplinares.
Retomemos o Decreto-Lei n.º 55/2018 de 6 de julho
No documento, podemos ler: “O programa do XXI Governo Constitucional assume como prioridade a concretização de uma política educativa centrada nas pessoas que garanta a igualdade de acesso à escola pública, promovendo o sucesso educativo e, por essa via, a igualdade de oportunidades.
A concretização destes propósitos, já inscritos na Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada pela Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, na sua redação atual, tem vindo a ser garantida através de medidas de aplicação universal. Porém, os dados disponíveis mostram que aqueles objetivos não estão, ainda, plenamente atingidos, na medida em que nem todos os alunos veem garantido o direito à aprendizagem e ao sucesso educativo. Por outro lado, a sociedade enfrenta atualmente novos desafios, decorrentes de uma globalização e desenvolvimento tecnológico em aceleração, tendo a escola de preparar os alunos, que serão jovens e adultos em 2030, para empregos ainda não criados, para tecnologias ainda não inventadas, para a resolução de problemas que ainda se desconhecem”
Vejamos como a Lei de Bases mantém vigência, com a sua “redação atual”. Os conceitos fundamentais estão lá e tiveram durabilidade ao longo do tempo, pese, embora, as necessárias alterações, sem desvirtuar os princípios e valores que presidem à lei.
Ora os “objetivos não estão, ainda, plenamente atingidos”. Há que garantir um currículo, flexível, mas estruturante, que permita que todos tenham “direito à aprendizagem” e ao “sucesso educativo”. É preciso que na expressão “sucesso educativo” esteja também presente sucesso e realização escolares, o que pressupõe o estudo e o desenvolvimento integral da pessoa, num currículo que consiga ser “projeto” e realização, “Projeto Autonomia e flexibilidade curricular”. Muitas vezes quando se fala em “flexibilidade curricular” queremos significar, também, flexibilidade escolar, o Currículo, entre os seus muitos conceitose sentidos, tem de significar estudo. De contrário, a escola só é inclusiva de nome. Uma Sociedade democrática e aberta só se faz com uma escolapara todos e com todos.


*Doutorado e Agregado em Educação e na Especialidade de Filosofia da Educação

Emanuel Oliveira Medeiros
Professor Universitário*

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