“Há condições para o preço do leite à produção passar para 50 cêntimos o litro”
Diário dos Açores

“Há condições para o preço do leite à produção passar para 50 cêntimos o litro”

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Jorge Rita, Presidente da Associação Agrícola de São Miguel

Os agricultores reclamam um aumento no preço do leite alegando as dificuldades com a subida de preços das matérias primas. Que resposta espera por parte da indústria?
O aumento das matérias primas, dos combustíveis, dos fertilizantes, dos fretes marítimos ou do gasóleo têm tido um impacto significativo  nos custos dos fatores de produção das explorações.
Embora já se tenham registado algumas subidas do preço de leite nos Açores, estas têm-se revelado insuficientes, pelo que as indústrias regionais têm de retificar a estratégia adotada e serem capazes de acompanhar a tendência que se está a verificar no continente e na Europa.  
Os produtores de leite dos Açores continuam a receber em média por litro de leite menos 6 cêntimos do que os produtores do continente e 12 cêntimos face aos seus colegas europeus.
Na Região há condições para o preço do leite à produção passar para 50 cêntimos o litro.
Os aumentos anunciados para setembro e também para outubro vão no caminho certo, mas ainda não cobrem as necessidades da produção.
Têm de existir novas subidas do preço do leite que permitam aos produtores saírem do sufoco que ainda vivem.
Caso as indústrias nacionais acompanhem a subida de preço do Pingo Doce de 11,4 cêntimos (e de outras pequenas indústrias já anunciadas na mesma ordem de grandeza), obviamente que as indústrias da Região têm que fazer o mesmo.
Os produtores de leite dos Açores têm de ter um rendimento justo e de acordo com as tendências dos mercados.
É imprescindível que o preço de leite praticado na região seja o mais adequado e vá de encontro às expectativas dos produtores, atendendo a que o sector leiteiro representa um dos principais pilares da economia dos Açores.


São muitos os agricultores que se encontram em situação difícil face a esta crise inflacionária?
Neste momento, muitos produtores de leite na Região atravessam um período crítico, atendendo ao aumento exponencial dos custos dos factores de produção, não existindo para já nesta vertente, sinais de melhoria a curto e a médio prazo.
Esta situação contribui em larga escala para o estrangulamento financeiro de muitas explorações.
Na Região, algumas ilhas, por serem afectadas pela chamada dupla insularidade, ainda sofrem mais com o aumento da inflação.
Não podemos aceitar que existam ilhas a pagar pouco mais de 30 cêntimos por litro de leite ao produtor.
Estes valores contribuem em larga medida para o abandono de produtores na fileira, e tivemos recentemente, o caso das Flores, onde infelizmente, se sucedeu o encerramento da fábrica existente.
A crise inflacionária promove o aumento de custos de exploração que não conseguem ser compensados só por ganhos de eficiência, por isso, é preciso que o Governo Regional continue a adoptar medidas capazes de ajudar a fileira e, a indústria, tem de ser solidária com os produtores, pagando um preço justo pelo leite que recebe.

A indústria também se queixa da situação actual…
A indústria queixa-se, mas pode e deve fazer mais.
Não pode continuar a refletir na produção as suas ineficiências, que é o que tem acontecido ao longo dos anos, com a política que adotou nos Açores de pagar o preço de leite mais baixo da Europa.
Fomos alertando que a estratégia da indústria assentar a sua produção, em produtos de baixo valor acrescentado, não era o caminho certo para a fileira da Região e hoje, esta posição é quase consensual.
As indústrias ao longo dos últimos quadros comunitários modernizaram-se duma forma considerável, mas não refletiram adequadamente na produção, o aumento de competitividade alcançado pelos diferentes projetos de investimento implementados.
No ranking das 100 maiores empresas dos Açores, estão muito bem posicionadas várias empresas e cooperativas ligadas à indústria de lacticínios, e a sua facturação tem aumentado de ano para ano, algumas com lucros acentuados, o que é bom para a fileira do leite.
Mas, não podemos perceber que neste cenário, as indústrias não aumentam o preço do leite aos produtores como deveriam.
É evidente que nem todas as indústrias são iguais, mas algumas delas têm de alterar a sua estratégia de modo a poderem criar produtos de valor acrescentado para a fileira.
Sabemos também que a distribuição não pode alhear-se da realidade da fileira de leite regional e nacional, devendo ter uma atitude proativa na defesa da produção nacional, e isso, passa pela valorização dos produtos lácteos que apresentam nas prateleiras, e têm de acabar com as constantes promoções do leite, que só servem de chamariz para a venda de outros produtos.

Segundo os últimos dados do SREA, o leite entregue nas fábricas está em queda em mais de 3% nos últimos 12 meses e mais de 5% nos últimos 3 meses. A que se deve esta diminuição?
Este é o resultado da estratégia que foi seguida pelo Governo dos Açores e pela Federação Agrícola dos Açores para a fileira do leite, e que teve como objetivo a diminuição da produção de leite na Região.
Refira-se que o próprio Presidente do Governo percebeu muito bem esta estratégia de redução da produção, e até Julho registou-se uma diminuição de cerca de 19,5 milhões de litros (4,92%) nos Açores.
Espera-se que no final tenhamos uma redução da produção de cerca de 30 milhões de litros e que resulta fundamentalmente da redução voluntária da produção de leite na Região, adoptada em São Miguel, Terceira e Graciosa.
Existiu uma adesão de cerca de 60% dos produtores que vão receber uma compensação de 15 cêntimos por quilo de leite se reduzirem a sua produção até 20%, sem qualquer perda de ajudas comunitárias.
Esta diminuição da produção obrigou a indústria a repensar a sua forma de estar no terreno, provocando alguma procura de leite no mercado, o que permitiu a subida do preço de leite.
Estou convencido que devido a alguma contra-informação que existiu na altura das candidaturas desta medida, a adesão dos produtores não foi ainda maior, mas mesmo assim, os resultados estão aí.

Há muitos agricultores a desistir da profissão? Diz-se que mais de 60 produtores de leite reconverteram as suas explorações para a produção de carne...
A par da medida da redução voluntária da produção de leite, também a reconversão de leite para carne tem ajudado á diminuição da produção de leite.
Como disse, foram reconvertidas cerca de 60 explorações de leite para carne, correspondendo a um volume de leite de aproximadamente 23 milhões de quilos.
Todas as dificuldades da fileira do leite, têm permitido nos últimos anos uma alteração de paradigma, tendo-se verificado uma grande redução do número de cabeças de gado e uma acentuada diminuição de produção de leite.
Só nos primeiros seis meses deste ano foram abatidas mais +25% de vacas leiteiras do que no período homologo.
Temos que dar algum mérito a estes produtores, porque não é fácil sair do leite.
Quem está habituado a produzir leite para depois produzir carne, tem de passar por um processo que não é muito fácil.
Tiveram coragem, mas também as condições existentes levaram a isso.
 Não só a baixa de rendimento devido à forma como o leite era pago, mas também por falta de mão-de-obra.
Estamos a viver uma situação muito difícil por falta de mão-de-obra na agricultura, não só no leite, mas também nas restantes produções agrícolas.
Esta realidade pode limitar em muito, a nossa capacidade de produzir alimentos na Região.
O abandono da produção de leite e transferência para a carne é, devido a algum descontentamento dos produtores em função do preço do leite, mas em muitos casos, é por falta de mão-de-obra.

Então, a produção de carne pode ser uma boa alternativa para as ilhas onde a produção de leite está em crise?
Este é um sector que precisava de maior organização e estão a ser dados passos nesse sentido existindo cada vez mais, melhores produtores e operadores.
A constituição da CERCA é também um factor positivo na solidificação do sector.
Nos Açores entendo que é preciso dar um salto na qualificação da carne açoriana, a região tem matéria-prima de excelência, que precisa ser valorizada.
O sector da carne é muito importante na economia regional e tem um potencial elevado de crescimento, e obviamente, de criar valor acrescentado.
A produção de carne pode ser mesmo a actividade agrícola principal, em algumas ilhas do arquipélago, numa altura em que o leite tem uma situação instável.
No entanto, há que rever a política de transportes existente na Região e apostar mais na formação.

Metade do queijo que se produz em Portugal tem origem nos Açores. Devíamos diversificar mais os produtos lácteos?
Sem dúvida, essa é aliás uma pretensão que a Federação Agrícola dos Açores tem demonstrado duma forma consistente e continua.
Produziu-se menos leite para consumo e menos leite em pó e produziu-se mais queijo, mas ainda temos um longo caminho na valorização dos produtos lácteos.
Actualmente, 43% do leite açoriano é utilizado em marcas brancas, 29% em leite em pó (embora algum tenha valor acrescentado) e os restantes 27% em marcas privadas.
Temos de alterar esta situação e, para a reverter, acredito que devemos fomentar a economia local, optar pelos produtos nutritivos e saudáveis, beneficiando do ambiente e bem-estar sustentável existente nas nossas ilhas, e ir, assim, de encontro às pretensões dos consumidores, que gostam e valorizam o leite dos Açores.
Tem de existir compromisso e consenso entre o Governo Regional, a indústria, a distribuição e os produtores de modo a se criarem as condições para dar à fileira do leite a consistência adequada, capaz de aproveitar e potenciar a excelente qualidade do leite da Região, criando produtos de valor acrescentado.

Os aumentos nos preços dos transportes dificultam a comercialização? Os transportes deviam ser repensados?
Os aumentos nos preços dos transportes têm sido significativos, provocando subidas de vários produtos.
Os impactos dos transportes nas importações e nas exportações são substanciais.
Não nos podemos esquecer que nos últimos meses verificaram-se subidas superiores a 100%, dos preços dos fretes dos transportes marítimos de granéis sólidos e de cerca de 500% nos preços dos fretes da carga contentorizada da China para a Europa Ocidental.
Estes são valores extraordinários e que depois se refletem nos preços dos transportes marítimos, nomeadamente, no nosso caso, em que por sermos região ultraperiférica, estamos longe dos mercados principais.
No caso da expedição e exportação, a nova conjuntura é muito prejudicial e afecta a comercialização dos produtos agrícolas que já tinha grandes debilidades, nomeadamente, nalgumas ilhas que são sistematicamente prejudicadas, seja por condições climatéricas adversas, por dificuldades dos operadores ou por deficiente operacionalidade dos portos.
Por isso, sempre defendemos que o modelo de transporte marítimo deve ser revisto na Região, de modo a podermos melhorar a circulação de mercadorias não só internamente, mas também com o exterior.
Aguardamos o estudo que está a ser elaborado nesta área, mas esperamos que existam alterações capazes de satisfazer as necessidades das diferentes ilhas, sem medidas megalómanas e fora da realidade.
A melhoria do modelo dos transportes marítimos é uma inevitabilidade e tem de corresponder às necessidades de comercialização entre ilhas e para o exterior das ilhas.

Quanto à nossa autossuficiência em termos de produção de milho e outros cereais, como estamos?
Os Açores são uma região extremamente dependente da importação de cereais, quer para a alimentação humana, quer para alimentação animal.
Aliás, a própria alimentação animal acaba por ter reflexos na cadeia alimentar humana, porque a subida dos cereais tem acontecido de uma forma muito acentuada.
As regiões mais pobres, como é o caso dos Açores, muitos países africanos e outros vão ter graves problemas no futuro se a situação se mantiver como está actualmente.
A subida do preço dos cereais pode ser boa para alguns agricultores, mas para os Açores, em concreto, não é.
A recente medida de apoio à sementeira de milho e sorgo adoptada pelo Governo dos Açores em sintonia com a Federação Agrícola dos Açores possibilitou aumentar a produção de milho silagem, grão e sorgo em mais de 264 hectares face a 2021, o que nos permitiu diminuir em parte a nossa dependência do exterior, mas para fazer face às necessidades na região, nunca seremos autossuficientes.
Somos ilhas, e embora tenhamos terrenos férteis, a área produtiva é limitativa, a orografia é complexa e temos um clima instável, e isso, são sempre factores limitadores.  

Finalmente, Bruxelas acaba de aprovar o plano estratégico português de 6.700 milhões de euros para a PAC. O que esperam os Açores desta nova PAC?
Este quadro comunitário vai ser decisivo para a Região, já que os novos pressupostos da PAC, assentes no pacto ecológico europeu, nas estratégias do prado ao prato e da biodiversidade 2030, serão exigentes para os agricultores.
Mas os Açores, pelas condições que já têm no que se refere por exemplo, à sua contribuição para a descarbonização, irão adaptar-se muito bem às grandes orientações propostas pela União Europeia.
Os valores aprovados neste Plano Estratégico da Política Agrícola Comum - PEPAC – para a região são ligeiramente superiores ao anterior quadro comunitário de apoio, mas é necessário ainda, uma análise mais aprofundada entre o Governo Regional e a Federação Agrícola dos Açores no que se refere à adopção das medidas aprovadas, bem como à sua dotação.
Não basta os meios financeiros estarem disponíveis, é preciso que as medidas a implementar vão de encontro às necessidades dos agricultores, que continuam a ser muitas e diversificadas.  A modernização do sector agrícola tem de continuar e para isso, o investimento comunitário deve ser preferencialmente canalizado para a produção, ao contrário do PRR, que se orientou para o sector público. Não nos podemos esquecer que na área agrícola, e associado ao investimento público (componente comunitária e regional), existe o investimento privado, que muitas vezes é superior à comparticipação regional.  O investimento privado no sector tem um efeito multiplicador em muitas outras actividades, sendo por isso, fundamental na coesão social e económica das nossas ilhas.


jornal@diariodosacores.pt

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