Diário dos Açores

A Edição do Centenário

Previous Article Reabilitação do AVC: a aposta necessária ecusto-efetiva
Next Article A Libido das Soberanias

Centenário de Pedro da Silveira, XVIII

Há dois anos, quando ajudámos a criar um ambiente propício à celebração do centenário do nascimento de Pedro da Silveira, um poeta e investigador literário falecido duas décadas antes e praticamente esquecido pelos açorianos e pelos portugueses, estávamos longe de prever a miríade de actividades que se foram desfiando em crescendo, trazendo para a primeira linha da actualidade cultural dos Açores a obra do florentino nascido a 5 de Setembro de 1922 e falecido a 13 de Abril de 2003.
Palestras e conferências, exposições, um documentário biográfico, recitais, placas indicativas em casas onde nasceu e viveu, um colóquio universitário, uma Antologia Breve, uma campanha de crowfounding para instalação de totens poéticos em várias ilhas, versos em vinil colocados em montras um pouco por todo o lado, um Miradouro Raul Brandão sobranceiro à Fajã Grande das Flores que também lhe rende homenagem, uma vintena de artigos em jornais e revistas de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Lisboa e Porto, um grupo de Facebook com noticiário e curiosidades em abundância, alguma atenção na rádio e na tv, uma colectânea de letras & artes inspirada em versos deles, surpreendem quem admitisse que esta efeméride haveria de passar discretamente na voragem do tanto que nos inquieta e absorve.
Felizmente, não sucedeu assim e Pedro da Silveira «renasceu» depois de muitos anos de olvido. Foi em 2006 — há 16 anos — que o Boletim do Núcleo Cultural da Horta lhe dedicou atenção pela última vez. Foi em 2019 — 16 anos depois da morte do poeta — que o Instituto Açoriano de Cultura empreendeu a compilação da sua obra poética, o simpático livro Fui ao Mar Buscar Laranjas, editado e prefaciado por Urbano Bettencourt.
A Biblioteca e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro, de Angra do Heroísmo, que recebeu os livros e parte dos papéis do escritor, só agora e pela primeira vez lhe dedicou consistente atenção bibliográfica e arquivística, tornando-se também um dos pilares desta comemoração.
A DRAC — após chegada tardia, hesitações, concursos obsoletos, turbulências e mudança de figuras em cargos de decisão — cumpriu enfim, com distinção, o encargo que em 1998 disse chamar a si, para desistir dele logo depois e durante mais de duas décadas... E a Câmara Municipal de Lajes das Flores — indiferente a velhas e empedernidas antipatias locais — tem sido notável na dinamização e suporte de tudo isto, fazendo com que a pequena ilha ocidental e um dos seus maiores ganhassem a atenção do arquipélago, vencendo o seu centralismo predominante.
Por todos estes motivos, ousaria mesmo dizer que estas comemorações do centenário de Pedro da Silveira podem constituir um estudo de caso sobre o panorama cultural dos Açores visto a partir do desempenho das suas instituições públicas e privadas, a hierarquia das suas prioridades, o justo equilíbrio entre cânone e inovação e a dinâmica transgeracional deste «arquipélago de escritores».
Ainda assim, para que Pedro da Silveira possa agora ser verdadeiramente conhecido e reconhecido, tornava-se indispensável a publicação da sua Prosa Dispersa.
Sem ela, ficaríamos ainda com o poeta, mas esquecíamos o investigador literário que tantos e tão bons serviços prestou à sua Ilha das Flores, aos Açores e ao país.
Sem ela, jamais compreenderíamos que o poeta de A Ilha e o Mundo e de Sinais de Oeste foi paulatinamente dando lugar ao autor de Leite de Vasconcellos nas Ilhas de Baixo, de Antologia de Poesia Açoriana do século XVIII até 1975, de Os Últimos Brasileiros e de muito mais.
Sem ela, tão-pouco aproveitaríamos a originalidade — e a precocidade — da sua abordagem crítica transinsular e intercontinental, aproximando Açores, Cabo Verde e Brasil pela literatura e pela geografia.
Sem ela, também ficaríamos longe de saber quanto os seus trabalhos ajudam a clarificar Cesário Verde, Fernando Pessoa e Camilo Pessanha, ou a valorizar Roberto de Mesquita, o cancioneiro popular florentino, a cidade da Horta como centro literário em finais do século XIX, As Ilhas Desconhecidas de Raul Brandão, a obra de Alfred Lewis e bastante mais.
Se a sua obra poética demorou tanto a ter uma edição condigna, quanto esperar por tudo o resto, que tem público limitado pela ordem natural destas coisas?
Eu que o diga, pois há dez anos não consegui os apoios indispensáveis sequer para fazer o levantamento exaustivo do que ao longo de meio século Pedro da Silveira deixara espalhado por publicações de todo o tipo, tempo e latitude.
Fixar a sua bibliografia foi, portanto, o meu objectivo primordial, mas também a grande vantagem destas comemorações, aproveitando-se os meios disponíveis para fazer aquilo que, noutras circunstâncias, nunca havia sido feito.
Aliás, não hesitei sequer um segundo em dar à minha nota de apresentação o título de «Agora ou nunca», para sublinhar tão enfaticamente quanto possível ser esta a ocasião por excelência para a publicação.
«Edição do Centenário» é um designativo convencional, para distinguir esta de quaisquer outras edições, pretéritas e futuras. Não tem um aparato gráfico especial, no entanto apresenta-se uns passos adiante no que diz respeito ao volume I, dito Poesia Reunida.
A primeira tiragem de 750 exemplares de Fui ao Mar Buscar Laranjas esgotara-se no editor, e agora dispomos duma nova versão, corrigida e aumentada, em especial com o posfácio de Pedro da Silveira à sua Mesa de Amigos, deste modo integrando as suas versões de poemas do mundo inteiro dentro do seu labor poético, aqui pela primeira globalmente considerado e entendido.
Outro aspecto que enriquece esta nova edição e a distingue da de 2019 é o facto de em rodapé dos poemas em que este ou aquele poeta aparece nomeado se indicar ele ter sido traduzido pelo nosso autor, na antologia acima referida. Esse seu diálogo incessante com a literatura universal, longe de ser um exclusivo dele, como é óbvio, ganha em ser evidenciado — em especial se tivermos em mente a genial «Saudação a Blaise Cendrars», um poema de 1952, ou a sua versão das «Vouyelles» deRimbaud, publicada num jornal do Porto em 1967.
A identificação dos trabalhos de história e crítica literária e etnocultural de Pedro da Silveira fez acumular um número imprevisto de 1200 páginas que o editor IAC preferiu dividir em dois tomos, o primeiro dos quais foi lançado na Ilha das Flores, no passado dia 5, ao lado da Poesia Reunida, já conhecida.
Pessoalmente, teria preferido que ficasse tudo num só livro, menos manuseável é certo, mas que dava prova imediata — e eloquentíssima — do muito que por tanto tempo esteve à espera de ser reunido e reimpresso.
Esse segundo tomo da Prosa Reunida, com c. 600 pp., já está preparado para publicação e sairá assim que o Instituto e o seu presidente, Carlos Bessa, entendam estarem reunidas as condições de financiamento público de que depende.
Em ambos estes tomos tentei fazer o que, como editor, sempre faço neste tipo de trabalhos: observar as grandes linhas, destacar as obras principais, hierarquizar os textos numa sequência que deixe o mais clarificado possível o pensamento do autor.
Uma excessiva vontade de juízo e interpretação é de tal maneira condicionada pela nossa própria percepção — ou capacidade de percepção... — num momento específico, que prefiro convictamente deixar que o tempo e os leitores, cada um deles, avalie a perenidade ou o esgotamento dum trabalho.
 Quando alguém relê encontra sempre pontos ou aspectos a que antes não atendera capazmente, e o mesmo tem obviamente de suceder a quem escolhe e publica textos de uma outra pessoa.
Neste particular, admito divergir do critério de Pedro da Silveira, crítico esclarecido e não raras vezes severo e mordaz, impiedoso até, se fosse caso disso. Mas também contraditório, como se verificará confrontando, por exemplo, opiniões sobre Nemésio dos anos 1940 a 1970.
Qualquer biografia literária é um caminho preenchido por altos e baixos, trabalhos longamente burilados e trabalhos apressados ou de ocasião, e todos pertencem a esse compósito que é a oficina do escritor, na qual um pequeno artigo pode denunciar uma cumplicidade de momento, desfeita logo adiante.
Para entender um escritor insular que se transferiu para Lisboa e procurou construir novos laços literários, que sejam quanto possível também um modo de vida, é preciso situar ou tentar situar minimamente essa deriva por jornais, revistas, tertúlias e editoras, tanto quanto por autores e temas de eleição.
Note-se, por exemplo, que enquanto foi ganhando bons créditos nos meios literários de Lisboa e Coimbra, a ponto de publicar no Centro Bibliográfico o seu A Ilha e o Mundo, ingressar nos quadros da vetusta Seara Nova ou escrever em revistas como Ler e Átomo, ou em jornais como Diário da Tarde e O Comércio do Porto, Pedro da Silveira pontuou a sua relação com a terra-mãe colaborando pela primeira vez com os institutos culturais recém-criados em São Miguel, Faial e Terceira, ora escrevendo para os respectivos anuários, ora oferecendo-lhes opúsculos como Colóquio em Honra do Menino Deus, ainda na década de 1950. A sua açorianidade foi cedo desfraldada nessa pequena obra-prima que é o livro sobre Leite de Vasconcellos nos Açores, com Silveira dentro. Além disso, observando a cronologia dos seus trabalhos, fica claro que as primeiras duas ou três décadas em Lisboa — onde beneficiou de fontes inacessíveis nas Ilhas — foram de intensa pesquisa de fontes historiográficas, que lhe permitiram escrever o verbete «Açores» do Dicionário de Literatura e preparar a Antologia de Poesia Açoriana.Em 1972, sem curso superior que o legitimasse em universidades, mas certamente que reconhecido por muitos académicos, Pedro da Silveira foi ao Brasil dar aulas sobre a participação de brasileiros nos movimentos literários portugueses do Realismo à dissolução do Simbolismo, trabalho de grande valor que haveria de sair com a chancela da Biblioteca Nacional em 1986, e agora pudemos resgatar também.
Disse há dias que o Centenário de Pedro da Silveira começa agora, com esta Edição em dois e depois três tomos, que aguarda agora por distribuição em livrarias e bibliotecas. Não é um retrato completo, pois teremos ainda que tentar recuperar o melhor da sua Correspondência e ver no seu espólio o que possa ser publicado sem ferir a dignidade dos trabalhos incompletos por concluir. Mas esta Edição do Centenário dá-nos pela primeira vez uma base seguríssima para conhecermos melhor a obra deste grande açoriano, «ilhéu da casca até ao cerne» — e certamente muito grato por isso.

Vasco Medeiros Rosa *

Share

Print

Theme picker