Diário dos Açores

Educação e Currículo: Contextos, Discursos e Práticas

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Nunca se pode, nem se deve, querer reduzir a Educação ao currículo, quer atendendo à Educação como formadora das pessoas e das comunidades quer atendendo à Educação como conceito e realidade em si e para si, no seu dinamismo. Nas próprias designações dos órgãos governamentais as enunciações têm sido diversas, a melhor é sempre a que junta Educação, Cultura e Ciência, por razões implícitas que, neste contexto, não vou tematizar.
Todavia, avanço a conceção do Saudoso Professor Doutor Manuel Ferreira Patrício que, na sua Obra, defende que há uma Identidade Ontológica e uma diferença funcional entre Educação e Cultura. Afinal, o que faz a Escola através da Educação? Faz, deve fazer, Cultura, e deveria fazer cultura da melhor quer nas salas de aula, nos clubes escolares e outras áreas de dinâmicas educativas, quer na interação entre as aulas e os clubes e a comunidade alargada, de forma holística, tomando como referência o Douto Pedagogo e Filósofo da Educação. Onde não há pensar e pensamento não há currículo de categoria. E currículo sem ligação à cultura de nada serve a não ser para encher pastas e pastas de planificações de projetos plastificados – descartáveis - de todo o tipo. O verdadeiro Projeto Curricular é, antes, Projeto Educativo, quer seja de escola, de turma ou outro. E nesta linha encontramos bons exemplos.
O currículo aparece muito depois como disciplina dentro das Ciências da Educação. Mas têm sido de tal maneira as reformas e contrarreformas educativas e curriculares que urge um recursocada vez mais permanente à Filosofia da Educação e à Filosofia do Currículo. As questões do currículo não dispensam um Pensamento Educacional: o que? para quê? como? com quem? para quem? Que ensino e aprendizagem? que avaliação? Etc, Sem essas questões de fundo – mas com uma Filosofia da Educação – o currículo cai num curriculismo dispensável,  isto é, cai numa noção redutora que o próprio Curriculum Vitae não aceita nem admite. Não me canso de afirmar que o Currículo nasceu a falar latim e, em muito, saber falar é latinar, os étimos das palavras estão implícitos e subjacentes, a latejar, no que dizemos e escrevemos.
Feitas estas considerações, entremos no Decreto-Lei nº 55/2018, de 6 de julho, que constitui um documento de referência mas, no sentido concetual, oscila, de algum modo, no seu nível nocional e concetual. O seu (des)afinamento de noções visa a dimensão operacional. Faz referência a um texto legislativo que continua a ser referenciado: a Lei de Bases do Sistema Educativo. Há legislação e legislação, não se equivalem, não só na sua designação e hierarquia jurídica mas principalmente no seu nível concetual. O Decreto fala logo no início em “escola inclusiva”, um conceito importante, que está muito longe de ser uma realidade numa sociedade de muitas desigualdades, há o discurso da igualdade de oportunidades mas a grande diferença está na concretização das próprias oportunidades, para que haja igualdades.
Também no início do Decreto é feita referência à necessidade de ser “dada às escolas autonomia para um desenvolvimento curricular adequado a contextos específicos e às necessidades dos seus alunos”. Ora, um dilema e uma tensão que atravessa sempre essa linguagem/realidade é a referência aos contextos, nas suas especificidades, e as aprendizagens comuns, que até decorrem de um documento que é aberto e rico do ponto de vista de semântica educativa mas que é tido como uma referência uniforme para todas as escolas. Trata-se do Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória.(Despacho nº 6478/2017, 26 de junho). No Prefácio deste Documento, escreve Guilherme D’Oliveira Martins:“As humanidades hoje têm de ligar educação, cultura e ciência, saber e saber fazer. O processo de criação e da inovação tem de ser visto relativamente ao poeta, ao artista, ao artesão, ao cientista, ao desportista, ao técnico – em suma à pessoa concreta de somos”.
Ora essa pessoa concreta que somos tem de ser a obrigação de toda e qualquer escola, até por uma questão ontológica e deontológica. Somos em Dignidade e essa dignidade precede o jurídico e funda-o. É essa Dignidade que significa a Diferença, as diferenças, não se tratam, numa primeira instância, de diferenças de condição social, que se caracteriza pela mobilidade, mas diferenças de ser, diferenças que trazem ao mundo a riqueza que uma pessoa é. Ou um Currículo é isto ou faz isto ou não vale nada, a valia de um Currículo está na sua seiva educacional e cultural, de contrário é um caco, uma noz vazia que não alimenta. O Currículo só o é se nele habitar os valores do ser, da beleza, da verdade, da bondade, etc. O Currículo só é digno se dignificar as pessoas. Um currículo só é digno se entrar, em presença e ausência, no curriculum vitae. O Currículo tem de fazer Humanistas e Civitas. Humanidade e Civilidade. O Currículo tem de acrescentar ser ao ser.
  Escreve Guilherme D’Oliveira Martins no Prefácio ao Documento “Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória”
“Um perfil de base humanista significa a consideração de uma sociedade centrada na pessoa e na dignidade humana como valores fundamentais. Daí considerarmos as aprendizagens como centro do processo educativo, a inclusão como exigência, a contribuição para o desenvolvimento sustentável como desafio, já que temos de criar condições de adaptabilidade e estabilidade, visando valorizar o saber. E a compreensão da realidade obriga a uma referência comum de rigor e atenção às diferenças”.
Este discurso não é tanto a sociedade que há, é a sociedade que se deseja, que “há a Haver”, e está sempre para além do desejo e da vontade, sempre na linha de (im)possibilidades de uma escola para todos, que lida com várias formas de exclusão, embora as procure superar. É preciso fazer uma hermenêutica das diferenças. Precisamos de uma escola que seja capaz de oferecer uma diversidade de saberes e de conhecimentos que contribuam para a formação personalizada dos alunos. De facto é fundamental uma “sociedade centrada na pessoa e na dignidade humana como valores fundamentais” Mas onde está esta escola que tem de existir para que a Sociedade não seja patológica e monstruosa? Onde está o personalismo na Educação? Onde é que os futuros professores e educadores estão a ser educados?, a ler e interiorizar o pensamento humanista de Carls Rogers, Tornar-se Pessoa, entre outros? Há um discurso humanista que se opõe a uma lógica de formação industrial ou pós-industrial. O que se está a ensinar e para quê? O como está, tem de estar, subordinado à axiologia e deontologia do Dever Ser, todavia, uma Deontologia fundada numa Ontologia. Só neste ponto o imenso que há a ler e pensar em À Porta do Ser, Obra Genial do Professor Doutor José Enes, um manancial para a Educação.
Todavia, é bom que os documentos estejam aprovados, porque validam e vinculam, a criação de vinculam legitima o discurso e a prática, que têm de ser práticas, no plural.
O referido Decreto-Lei começa por “Definições” e só depois vai para os “princípios orientadores”. Não se trata de uma lógica que deveriaser dedutiva mas sim da necessidade de se partir de conceitos e conceções e depois ir operacionalizando. Vejamos as “definições”: “a) Abordagem multinível”; “Aprendizagens essenciais”, (vejamos como é definido) “o conjunto comum de conhecimentos a adquirir, identificados como os conteúdos de conhecimento disciplinar estruturado, indispensáveis, articulados concetualmente, relevantes e significativos, bem como de capacidades e atitudes a desenvolver obrigatoriamente por todos os alunos em cada área disciplinar ou disciplina, tendo, em regra, por referência o ano de escolaridade obrigatória; c) “Autonomia e flexibilidade curricular”. d)”Documentos curriculares (DAC).” Trata-se de uma definição muito discutível sem nível concetual, sequer. f)g)h). Finalmente a última definição?! “i”Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória”. Antes mesmo de avançar só este facto faz deste Decreto um Documento sem grande consistência concetual, em termos Educativos e Curriculares, o que não lhe tira eventual eficácia mas esta nunca promete sem a ciência dos princípios e conceções.
Vejamos o que está escrito:
«Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória», estruturado em princípios, visão, valores e áreas de competências, constitui a matriz comum para todas as escolas, ofertas e modalidades educativas e formativas no âmbito da escolaridade obrigatória, designadamente ao nível curricular, contribuindo para a convergência e a articulação das decisões inerentes às várias dimensões do desenvolvimento curricular: o planeamento e a realização do ensino e da aprendizagem, bem como a avaliação interna e externa das aprendizagens dos alunos.” Como é possível que um Documento desta natureza seja (des)enquadrado num Decreto-Lei (Artigo 3º) “Definições” e haja um “Artigo 4º sobre Princípios Orientadores”. “Definições” não é a palavra adequada, deveria ser enquadramento, linhas orientadoras, princípios orientadores, etc.
Esta falha de arrumação, ou de organização (prefiro) estruturante, concetual, ficou, até certo ponto, salvaguardada na alínea j) do Artigo 4º:
“j) Flexibilidade contextualizada na forma de organização dos alunos e do trabalho e na gestão do currículo, utilizando os métodos, as abordagens e os procedimentos que se revelem mais adequados para que todos os alunos alcancem o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória;”
Há uma mistura de elementos, de aspetos que não são formulados como Documentos Orientadores, Princípios Orientadores, Conceitos fundamentais e estruturantes, ou outros. As “Definições” ficam a martelo, sem finura ou apuramento concetual e os “Princípios Orientadores” deviam preceder as “definições” que mais parecem uma pretensa operacionalização.
E depois de o “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória” vem o “ato falhado” das “competências” quando no Artigo 6º “Finalidade 1 “se pode ler” 1 — “O currículo visa garantir que todos os alunos, independentemente da oferta educativa e formativa que frequentam, alcançam as competências definidas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.”. Afinal, em que ficamos, em matéria de Currículo, no Decreto-Lei? Ou será de competência? Em que ficamos quanto à conexão com o Documento, de Referência, intitulado “Perfil dos Alunos À Saída da Escolaridade Obrigatória”?

 

 *Doutorado e Agregado em Educação e na Especialidade de Filosofia da Educação

Emanuel Oliveira Medeiros
Professor Universitário*

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