Diário dos Açores

Os meus primeiros livros vieram das carrinhas da Gulbenkian. E os teus?

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Quando um livro reflete a nossa memória, é porque cumpriu o seu objetivo. Ainda me recordo, com real nitidez, das minhas visitas às carrinhas da Gulbenkian, na rua da minha escola, onde – pensava eu – ia sozinha. Em conversa com a minha irmã há pouco tempo, percebi que não: afinal, íamos juntas, mas a minha memória resume-se a mim e às carrinhas, nada mais! Nem a minha irmã, nem outros meninos, como se aquele veículo existisse só para mim. É isso que a leitura faz em mim: dá-me mundos só meus.
A minha última experiência relacionada com este tema foi feita em parceria com verdadeiros amigos dos livros e das carrinhas que percorrem o país para levar a leitura aos sítios mais recônditos. “Homens Livro” é um trabalho literário com edição da Letras Lavadas, com autoria de Bento Ramires, Carlos Marta e Rui Guedes, e minha coordenação.
O livro apresenta fotografias de um tempo em que Portugal lia sobre rodas, quando miúdos e graúdos acorriam às carrinhas da Fundação Calouste Gulbenkian para levarem novas histórias para casa e para toda a família.
São tempos de um país que não usava nem abusava da televisão e da tecnologia e que, por isso mesmo, o livro era um grande companheiro para todas as idades. As fotografias deste livro, parte integrante de acervos fotográficos e documentais de Bento Ramires e de Carlos Marta, revelam esta fusão de idades, de pensamentos e de identidades. E quem não se lembra de ir àquelas carrinhas adotar por um mês os cinco livros escolhidos para as próximas leituras? A maioria de nós sim, certamente!
O que também não conseguimos esquecer é a presença dos condutores e dos encarregados das carrinhas, às vezes as duas funções numa única pessoa. Por isso, não podíamos descurar os testemunhos de quem conduziu por Portugal continental e ilhas, de lés a lés do país, para distribuir literatura e cultura. Nesse âmbito, o trabalho literário em causa apresenta testemunhos de três antigos encarregados, nomeadamente António Ferreira, de Coimbra, Rosélio Reis, dos Açores, e Raimundo Figueira, da Madeira.
Em vários pontos o discurso destes três senhores dos livros se cruza; seja na ligação que se criava com os leitores, nas amizades que se faziam nas aldeias ou nas restrições que as igrejas impunham a quem quisesse conhecer o que eram, afinal, as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian.
Se as fotografias falam por si, os documentos seguem o mesmo caminho e neste livro encontramos a reprodução dos cartões de leitor, dos avisos de entrega dos livros, dos livros censurados pela PIDE, assim como dos itinerários percorridos pelas carrinhas.
O mundo da literatura percorre estas páginas e, como complemento fundamental, o autor Rui Guedes apresenta um conto da sua autoria, no qual recria este mundo da espera pela chegada dos livros, da ruralidade que mais apreciava estes momentos e que sentia, realmente, felicidade quando os levava para casa.
Por fim, mas não menos importante, este trabalho contempla um estudo realizado pelo encarregado Armando Carmelo, nome recordado por todos que viveram e trabalharam neste mundo das carrinhas itinerantes da Gulbenkian. Entre testemunhos dos leitores, indicações dos livros mais procurados à época, profissões e faixas etárias de quem usufruía destes serviços, este livro serve de registo do tanto que foi feito pela Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito das suas bibliotecas itinerantes.
Somos nós: portugueses, leitores e amantes da cultura e da literatura que estamos neste livro, para relembrar o que fomos no passado, o quaal, não deixando de existir na nossa memória, nunca se evapora!
Esta obra é também um bem-haja e uma palavra de motivação às bibliotecas itinerantes de hoje em dia, que continuam, de outra forma e com outros recursos, a correr o país nos meios mais recônditos e escondidos; talvez hoje com uma função mais difícil e importante, tendo em conta toda a tecnologia que se apresenta diariamente a todas as faixas etárias.
Seja novamente um leitor da Fundação Calouste Gulbenkian com este livro, volte à sua infância, adolescência ou juventude e sinta, uma vez mais, como um livro pode representar o fundo do nosso coração e da nossa memória!
Boa viagem!

*Diretora da Livraria Letras Lavadas

Patrícia Carreiro*

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