Diário dos Açores

Sossego e paz que vão faltando

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Sempre ouvi, e disso me convencia, que o Pico era uma ilha de paz.
Na minha infância vivida no alto da Miragaia, nas Bandeiras, as portas ficavam abertas durante todo o dia, mesmo que não houvesse alguém em casa. Por vezes, vizinhos e conhecidos entravam e saíam para deixar qualquer coisinha, para levar um bolo de milho em falta ocasional que, depois, pagavam em fresco no dia da fornada semanal ou, simplesmente, para pegarem de empréstimo uma ferramenta de trabalho que logo devolviam mal deixasse de ser necessária. Era uma vivência de confiança mútua que nunca ou mui raramente foi posta em causa, mesmo quando, por vezes, surgiam alguns desentendimentos na vizinhança que os dias breves faziam esquecer rapidamente. De vez em quando, acontecia um ou outro caso, quase sempre provocado por excesso de álcool e falta de alimento, mas nada que não se tolerasse e, em poucos dias, se transformasse em assunto divertido nas conversas pouco variadas do dia a dia. Muitas vezes eram os próprios protagonistas de tais episódios, considerados mais atrevidos, a rir-se de si mesmos e a reconhecer publicamente os seus erros. Bons tempos.
Em casa de meus pais havia uma única chave, uma chave amarelada, grande e pesada, que servia na fechadura da porta principal, ou seja, a porta da sala de fora como, então, se dizia. As restantes portas da rua, e eram mais quatro nos dois pisos, fechavam-se interiormente com trancas de ferro. Se acaso a família saía toda para a Madalena, Faial ou outro destino menos habitual, ninguém levava a chave no bolso. Ela ficava sempre guardada num buraco do muro alto da banda do caminho, escaninho quase público ou porta-chave conhecido de todos os vizinhos e parentes, aonde estavam antecipadamente autorizados a aceder em caso de necessidade. E essa única chave, talvez porque grande e pesada que nem obra de ferreiro, nunca se perdeu.
Andava eu já nos meus trintas e tais, com filhos e família constituída, quando se deu um acontecimento arrepiante que chocou a ilha: uma rapariga fora morta e enterrada, ainda com vida, numa espécie de atafona de chão térreo, na freguesia de Santo António. O caso deu que falar, até porque trouxe de fora polícia e jornalistas de envergadura. Toda a gente do Pico indignou-se e revoltou-se com tamanha brutalidade nunca antes vista nem sonhada. Também eu não podia deixar de repudiar tal barbaridade, ainda mais que fora testemunha de casamento de uma das principais intervenientes, precisamente a confessa homicida ou colaborante na macabra brutalidade. Até aí ninguém contava nada mais ousado e temível do que as proezas do Belarmino, um lendário homem da Ponta da Ilha que era lembrado como o Robin dos Bosques picaroto: tirava aos mais abastados para acudir aos necessitados. Afinal um simpático fora de Lei que muitos admiravam e consideravam quase como herói.
No decurso dos últimos trinta anos da minha vida têm acontecido coisas nesta ilha do Pico que ninguém se atreveria a imaginar. Foi o caso de um pai e filho encontrados mortos e queimados dentro do próprio carro estacionado na berma da Estrada Longitudinal, à Travessa. Depois, um indivíduo de outra ilha a residir cá foi morto à paulada por um grupo de rapazes que cobriram o corpo com paus e ramagens na conhecida Mata do Hospital. Ainda depois, um rapaz, residente na Criação Velha e muito conhecido no meio madalenense, desapareceu, sem qualquer explicação, para nunca mais ser visto. Mais recentemente, um bom trabalhador, calmo e popular, da Terra do Pão, havia de ser baleado e morrer dentro da sua carrinha em plena via pública, pouco depois de ter estado a falar comigo no aeroporto... Nada mais se soube.
Agora são dois indivíduos que desaparecem no mesmo dia... Dizem-se coisas, mas não sabemos nada de concreto. Será que ficarão desaparecidos para sempre como o tal jovem da Criação Velha? Ou talvez se encontrem os corpos, mas nunca se saiba quem provocou tão horrendos atos como aconteceu no caso verificado na Terra do Pão?...
Há já quem diga que por cá tudo se faz e nem polícia nem justiça conseguem desvendar nada. Esperamos, no entanto, que este caso não seja apenas mais um que fica no segredo dos deuses como aconteceu com os últimos dois casos, sob pena da vida das pessoas no Pico se tornar absolutamente insegura.
Será que a nossa pacata ilha perdeu todos os bons costumes de outrora e está a transformar-se num local preferencial de crime e impunidade?
Coisas dos novos tempos...

Albino Terra Garcia  *

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