Diário dos Açores

Por uma cidade inclusiva

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Era um homem bem parecido e de trato delicado, embora apresentasse o cabelo despenteado e a roupa amarrotada. 
Ao subir a escadaria do adro da igreja, um casal já entrado na idade foi surpreendido por um pedido de esmola para matar a fome da manhã.
-Sou de Santa Maria – apresentou-se  o homem, transparecendo a tristeza de quem já viveu dias melhores. Vim para aqui há quatro meses, mas não encontro trabalho.  
Seria um emigrante regressado da América, talvez mais um repatriado expulso do país onde se educou e eventualmente trabalhou que, por não ter defensor e por ter infringido uma qualquer norma foi mandado embora, sem lhe ser dada possibilidade de reabilitação.
Ei-lo agora pelas ruas da cidade, estendendo a mão, pedindo para satisfazer as necessidades básicas e, eventualmente, para outras desviantes.
No fim da cerimónia religiosa, o número inicial de três carenciados duplicou integrando  também uma senhora. Todos estendiam os copos de plástico, mas as moedas não caíam. 
O seu silêncio juntou-se ao dos crentes, num surdo clamor de que a pobreza e a miséria estão a aumentar a olhos vistos: junto das igrejas, dos contentores de lixo, pedindo pelas portas, solicitando alimentos em instituições sociais e paroquiais. 
O que se tem feito é muito pouco e não chega para mitigar as situações de pobreza que afrontam a dignidade humana, muito menos para alterar comportamentos e situações de vida a  milhares de cidadãos.
Os que pedem para sobreviver têm as suas fraquezas humanas, como todos e a crueza de suas vidas reflete-se na forma como encaram a sociedade que também os discrimina. 
Há culpas de parte a parte, mas não se aceita que se pretenda criminalizar os carenciados ou os sem-abrigo catalogando-os como agentes de desordens, do “importuno constante de mendicidade agressiva” 1 que afeta a imagem turística e contraria os panfletos promocionais da beleza,  tranquilidade e bem receber, como qualidades do nosso destino.
Um estudo efetuado pela Associação Novo Dia, cujos dados foram revelados em julho último, revela que nos Açores, em 31 de dezembro de 2020, existiam nos Açores 493 pessoas em situação de sem abrigo. 
“A maior parte delas (78,7%), estariam numa condição de sem casa, ou seja, tinham onde dormir, mas estavam dependentes das respostas institucionais para a garantia mínima de direito à habitação (Centro de Alojamento temporário e/ou pagamento total ou parcial de apoio de renda). As restantes 21,3% não teriam sequer um teto e estavam habitualmente a dormir na rua, noutros espaços públicos, em locais precários ou em dispositivos de emergência.” 2
Em São Miguel, existiam então 373 sem-abrigo (75,7%), dos quais 344 (70%) em Ponta Delgada – 73 (21%) pessoas sem teto e 271 (79%) sem casa. “É o quinto maior concelho do país com maior proporção de pessoas sem abrigo face à população residente”, afirma o relatório elaborado pela Novo Dia.
Importante também é referir que na data referida pelo estudo, os Açores apresentavam no conjunto do país, a maior proporção de pessoas em situação de sem abrigo por mil habitantes (2,00%), sendo superior às áreas Metropolitana de Lisboa (1,67%) e no Algarve (1,39%).
Na base deste problema está o ter ou não ter habitação.
Numa entrevista à rádio Açores TSF, Paulo Fontes, um dos autores do estudo afirmou: 
“Quando falamos de sem-abrigo, as pessoas muitas vezes pensam que são comportamentos desviantes ou que são pessoas toxicodependentes, mas o centro do conceito é a habitação, é o ter ou não ter um lar, essa segurança básica que nós temos e que é essencial para criarmos a nossa identidade e as relações com os outros. E é aí que nós temos de mudar o paradigma” 3.  Fontes exemplifica com um novo projeto “Housing-First” desenvolvido em Lisboa, onde “algumas centenas de pessoas têm agora casa, voltaram a trabalhar e a ser autónomos porque conseguem pagar a renda.” 
É, pois, pura demagogia e ignorância afirmar que quem não tem casa é porque não quer trabalhar. 
Teria sido certamente mais útil que a grave problemática dos sem-abrigo em Ponta Delgada abordada pela Câmara do Comércio e por associações empresariais ligadas ao setor turístico tivesse sido analisada, primeiramente, com as instituições sociais que acompanham no terreno os sem abrigo. Se tal tivesse acontecido, provavelmente, não teriam transmitido à opinião pública uma visão securitária, policial e aparentemente discriminatória de uma parte da população, cujos comportamentos são condicionadas, em primeira instância, pela situação social em que se encontram e só depois pelos atos desviantes.
A resolução dos problemas sociais, nomeadamente: a falta de habitação dos sem abrigo, é demasiado complexa e engloba todo o tecido social e as instituições que nele intervêm. Vai muito para além da problemática da pobreza, do alcoolismo e da toxicodependência, porque envolve a dignificação e segurança no trabalho, a formação profissional, o tecido empresarial, as justas remunerações, os cuidados de saúde primários e diferenciados, a estabilidade familiar, etc, etc.   
Neste complexo “puzzle” é imperioso que os agentes sociais trabalhem em rede, segundo a sua área de ação. Sem excluir ninguém: as entidades públicas e privadas, instituições religiosas, educativas, empresariais e culturais, pois o problema tende a agravar-se, se nada for feito.
Resolvê-lo, como pretendem alguns, com recurso a um apertado e rigoroso policiamento é descriminar pessoas, criar guetos, delimitar espaços públicos, ofendendo direitos fundamentais e constitucionais, numa sociedade que se pretende inclusiva.
Espero que impere o bom senso e que em Ponta Delgada todos se olhem como iguais, como propuseram em 1910 os ideais republicanos.

1    Comunicado da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada, Diário dos Açores, 4 outubro 2022
2    https://www.novodia.org/wp-content/uploads/2022/05/RELATORIO_A_MARGEM_CARATERIZACAO_INICIAL.pdf
3      https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/temos-de-mudar-o-paradigma-ha-quase-500-pessoas-em-situacao-de-sem-abrigo-nos-acores-14993429.html

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

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