Diário dos Açores

Memorial da coragem proibida (*)

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Em memória da saudosa avó Maria dos Anjos, falecida em Janeiro de 1974, aos 93 anos, curtida pelo silêncio da íntima certeza de que o seu filho primogénito jamais pertencera à ‘quadrilha da mão-negra’.

1 – gemidos da sapateia fascista com ‘sotaque micaelense’ (1933-1973)                   
... /...  Assumo publicamente a responsabilidade pela feitura deste inventário apressado do sinuoso percurso da civilidade micaelense. Quero continuar solidário com o sofrimento emocional daqueles que se sentiram insultados ao verem a sua ilha usada como rochedo penal, no meio do atlântico-norte. Temos  notícias dispersas dos compatriotas que foram (arbitrariamente) despejados em algumas das ilhas açorianas (1935-45), castigados pelo crime de serem militantes inspirados no evangelho da ‘coragem proibida’ da luta contra os mordomos do ‘pronto-a-vestir’ da santidade. Ademais, seja-nos conferido o singelo privilégio de contribuir para que a memória do exemplo DE Carlos Ferreira não fique esquecida, nem desprimor do silenciado martírio daqueles ilhéus que se sentiram ‘deportados’ na própria terra...  
Eis aqui o motivo deste breve texto: confirmar o exemplo do estufeiro Carlos Ferreira (estimado tio, oriundo de Rosto-do-Cão, co-fundador da Casa do Povo de Fajã de Baixo); estou a referir um cruzado-camponês da liberdade, destemido anti-fascista... –  duramente castigado pelo atrevimento proibido da jovem coragem cívica...

2 – As vítimas, os carrascos e a habitual indiferença da maioria silenciosa
.../... Com base no testemunho verbal dos veteranos estufeiros da Fajã de Baixo (no verão de 1975,  alguns deles estavam ainda lúcidos nas suas conversas amplamente testemunhadas pelo então veterano presidente daquela freguesia), o estufeiro Carlos Ferreira era mancebo destemido, exímio caçador de codornizes, experiente ‘tratador’ de cães...
Do relacionamento ocasional (embora subalterno) com alguns dos notáveis deportados que foram forçados a ‘residir’ na ilha (1933-37), resultou que o jovem estufeiro depressa desse conta das habituais arbitrariedades cívicas cometidas pelo autoritarismo fascista. Não obstante o grau obviamente elementar da sua preparação literária, teve contudo a oportunidade de lidar com bons mestres e de beneficiar da convivência clandestina com livros raros para a época...   
Acontece que em finais da década de 30 do século passado (1935-40), um dos mais sinistros agentes do fascismo em terra micaelense foi um tal tenente-de-infantaria, chamado Manuel Magro Romão – untuoso lacaio aliciado pelo delírio anti-democrático da moda: figura franzina, depressa arvorado em ‘napoleãozito de esquina’, a quem foi conferido o comando da Polícia Cívica de Ponta Delgada.
Gaguejam as crónicas da memória colectiva do tempo que, em dias de maus fígados, o intendente Romão divertia-se a passear a sua asmática ‘autoridade’ pela pacatez de Ponta Delgada:  uma das ‘tarefas patrióticas’ (que lhe dava um gozo enorme) era o ritual de esbofetear o munícipe distraído que ousasse caminhar no lado errado da via pública… gesto considerado ofensivo ao autoritarismo das suas prepotentes posturas policiais.
Consta que de certa feita, porventura com a opinião já (in)formada pelos ‘bufos’ da praça micaelense, o ‘remendo de gente’ chamado Romão fez questão de interrogar, pessoalmente, o valoroso estufeiro. Acontece que naquela época, Carlos Ferreira já era conhecido como criatura dita ‘perigosa’,  que tivera acesso gratuito a livros excomungados pelos príncipes da virgindade ideológica decretada pelo salazarismo nascente. Ademais, por mais duma vez, o jovem estufeiro fora surpreendido a ‘botar’ palavra ‘anti-estado-novo’ nas barbearias, nas tabernas mais concorridas, e não raro junto à escadaria da senhora da Boa-Nova, Fajã de Baixo, nas noites cálidas de verão, local preferido pelos assalariados da pobreza atenuada pela presença amigável do garrafão da caloira...   
Há indícios (que não interessa agora revisitar) que conduzem à proximidade do facínora denunciante da época: alcoviteiro maricas, aferidor do consumo eléctrico das residências aristocráticas. Mas... o que interessa agora recordar através do alfabeto da memória, é a natureza do interrogatório a que o estufeiro foi sujeito, à porta-fechada, como aliás recomendavam os preceitos do caciquismo politico da época.
E assim foi: o ‘patrasana’ tenente Romão desconhecia a verruga desavergonhada que trazia na cara, porque era enfermo incurável da cobardia. A sua fragilidade física estava sempre protegida por seis guardas de polícia, gente quase analfabeta, mas feliz por não serem cavadores da terra dos outros. Os guardas estavam estrategicamente colocados nas imediações do seu faustoso gabinete, instalado na zona adjacente leste ao palácio da Conceicão...
(.../...)  o que se sabe é simples:  num dado momento do interrogatório, a porta do gabinete foi aberta, abruptamente: num ápice, os guardas viram o pequerrucho tenente Romão a correr estavanado, com o rosto e a farda salpicados de tinta vermelha (ou talvez sangue?!). O tenente parecia louco, e berrava, e berrava, histericamente, aos seus subordinados:
- … prendem este malandro! Acabem depressa com este malandro!
Ora, ninguém conhece ao certo os pormenores tácticos usados pelo fedorento intendente Romão, no seu interrogatório pidesco. Sabemos apenas o que foi testemunhado pelas pessoas, inocentememte,  apanhadas no rodopiar dos eventos. O estufeiro Carlos Ferreira foi amarrado para ser (apropriadamente?) agredido pela meia dúzia de polícias de serviço (na circunstância, os agentes tinham urgência em provar serem capazes de bater, a valer ,nos detidos previamente amordaçados).          
... resumindo: para não acicatar solidariedades perigosas, o prisioneiro sem julgamento, Carlos Ferreira, foi simplesmente ‘despachado’ para a ilha Terceira, com toda a papelada preenchida, atestando a sua suposta qualidade de agente subversivo do anarquismo sindicalista... Ainda hoje muito pouco se conhece àcerca do seu estado mental, ao desembarcar na ilha Terceira, em trânsito para o depósito prisional da histórica fortaleza de S. João Baptista. Sabe-se apenas que viajou amarrado, instalado no porão destinado ao gado em trânsito  (.../...)
... E pronto! Em 18 de Agosto de 1937, a nossa família recebeu os seguintes dizeres numa carta oriunda da Ilha Terceira, com os seguintes:  
“O cadáver do seu infeliz  filho foi sepultado no dia 31 de Julho passado, no cemitério de Nossa Senhora da Conceição, desta cidade de Angra do Heroísmo.
                                       
Desejo a V.Exa. muita saúde e a graça de Deus…
                                                              Damião de Sousa, Director

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(*) excertos do texto publicado no livro “Canteiro da Memória” – 2010.

     (***) Breve curiosidade: na Fajã de Baixo, graças à solidariedade cívica do valoroso presidente, João Carlos Macedo, o nome do estufeiro Carlos Ferreira foi (democraticamente) atribuído a uma das artérias populares daquela ridente freguesia.
Na época (1997), viajei aos Açores para cumprir a missão de representar a minha família na cerimónia pública.  
Perante a ausência dos camaradas socialistas do Concelho, tivemos o privilégio de auferir a presença do apreciado amigo, dr. Roberto Amaral, bem como a cativante surpresa da presença do professor doutor Alexandre José Linhares Furtado (sem desprimor pelas dezenas de democratas que apoiaram a iniciativa da Junta de Freguesia, na época (1997) presidida por um dos mais antigos autarcas do país).

João Luís de Medeiros *

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