O mito e a Fé que sustentam a crença açoriana
Diário dos Açores

O mito e a Fé que sustentam a crença açoriana

Previous Article Previous Article O mito e a Fé que sustentam a crença açoriana (Parte II)
Next Article Sindicatos denunciam contratações abusivas na RTP-A Sindicatos denunciam contratações abusivas na RTP-A

Senhor Santo Cristo dos Milagres

Hoje, o Campo de São Francisco é palco de mais uma procissão em Honra de Nosso Senhor Santo Cristo dos Milagres.
As festividades que decorrem no quinto Domingo de Páscoa , terminando na Quinta-feira da Ascensão, trazem a São Miguel, os filhos que outrora saíram à procura de uma nova vida ou de turistas que por curiosidade aproveitam para vivenciar a maior festa religiosa do Arquipélago dos Açores.
O Coro Baixo do Ecce Homo transforma-se num jardim repleto de flores que embelezam e transformam-no. E o mesmo nos bendizia com a sua presença ao correr as ruas da cidade de Ponta Delgada, acompanhado por uma onde de fiéis e devotos que agradecem as dádivas concedidas, embargados pelo comovedor olhar que reflecte uma alma estarrecida pela dor que acompanha a humanidade.
Talhada em madeira sob a forma de um relicário, esta peça representa o episódio de martírio de Jesus Cristo quando apresentado à multidão na varanda de Pretório. É a imagem do senhor após ter acabado de ser flagelado, representado com os punhos atados, torso despido e com a coroa de espinhos na cabeça que sofreu em prol da nossa salvação.
Seja descalços, acompanhados de círios, de joelhos ou simplesmente com o terço na mão, a verdade é que a fé depositada no Senhor faz com que todos queiramos prestar a nossa homenagem e deste modo agradecer as bênçãos alcançadas.

O mistério envolto à imagem

A aquisição da imagem do senhor Santo Cristo dos Milagres continua envolta numa aura de mistério que torna o mito do culto religioso mais fascinante.
Entre lapsos históricos e embelezados por lendas sobre a sua obtenção e chegada ao arquipélago, a verdade é que muitas das referências acabam por não corresponder às fontes expressadas por alguns historiadores.
Contribuindo para este facto estão as fontes orais que alastraram-se ao longo de séculos até ao presente amplificando as dúvidas e inconsistências na narração relativa à imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Para tal, é necessário retomarmos a 1523, quando é alicerçado o Convento de Conceição de Vale de Cabaços, em São Miguel. Petronilha da Mota, filha de Jorge da Mota, um nobre e anterior cavaleiro de Aviz, e de Maria Cordeira, é determinante para a criação do mesmo, uma vez que viria a tornar-se a primeira religiosa de São Miguel, tendo virado as costas à riqueza e luxo, e afastando dos seus planos de contrair matrimónio.
Por outro lado, vindo viver em São Miguel, surge Isabel Afonso, que negando-se à ideia de contrair matrimónio acabou por fugir de casa na companhia de Rodrigo Afonso, seu tio, que acabaria por ser o primeiro Síndico do Mosteiro de Santo André de Vila Franca do Campo.
Com a sua chegada, obteve conhecimento da existência de Petronilda da Mota e da sua vida religiosa, tendo-se iniciado uma amizade que acabou por influenciar Isabel Afonso a tomar os hábitos.
A tradição envolta da aquisição da Bula Apostólica para que fosse possível a fundação do Convento de Conceição de Vale de Cabaços perdura até aos dias de hoje.
Algumas fontes asseveram que duas clarissas, Petronilda da Mota e Isabel Afonso, deslocaram-se a Roma, de modo a solicitar a bula ao Papa Paulo III que por ventura teria oferecido às duas a imagem.
Contudo, é neste facto, que surgem lacunas em torno à aquisição da imagem, uma vez que o Papa Paulo III, só viria a ser proclamado Papa em 1534, ou seja, alguns anos depois do episódio descrito.
Gaspar Fructuoso, na sua obra “Saudades da Terra”, não menciona a obtenção da imagem do “Senhor”, embora faça referência há concessão da bula, ao capitão donatário Rui Gonçalves da Câmara. No caso de Frei Diogo das Chagas, o mesmo descreve, de forma pormenorizada, o que acontecera às freiras do Vale de Cabaços, embora nunca menciona a existência da presente imagem.1 A menção à imagem surge com Frei Agostinho de Monte Alverne: “ao descrever a vida da madre Inês de Santa Iria do Mosteiro da Esperança, diz: onde naquele tempo levavam uma imagem do Ecce Homo, que ainda está na Misericórdia, no altar onde dizem missa aos doentes da enfermaria”.2
No entanto, continua a perpetuar no imaginário do povo açoriano a aragem devota que embala as lendas alusivas ao naufrágio sofrido pelo barco que transportava a imagem e na aparição da mesma na costa onde se encontrava o Mosteiro dos Cabaços, tornando-se ainda um mistério aquando da sua aquisição e consequente chegada desta a São Miguel.
Alguns historiadores defendem que pelas características da imagem, está poderá ser datada do século XVII e assim conjecturar que a mesma possa ter sido oferecida por D. Rodrigo da Câmara, 5.º capitão do donatário da ilha de São Miguel.
Mosteiro de Nossa Senhora
da Esperança e Madre Teresa
 da Anunciada

Dada à segregação do Convento de Conceição de Vale de Cabaços e o perigo de encontrar-se exposto a ataques de corsários ou piratas franceses, o mesmo acabou por desamparado e as religiosas ingressaram no Convento de Santo André, em Vila Franca do Campo.
Todavia, em 1541 as religiosas mais pobres, seriam transferidas para o Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada, como foi o caso da madre Inês de Santa Iria e as suas companheiras, tendo esta sido a responsável por levar a imagem do Senhor Santo Cristo para o Mosteiro onde persiste até aos dias de hoje.
Por ventura, a imagem seria colocada na capela de Nossa Senhora da Paz e acabaria por cair no esquecimento. É a Madre Teresa da Anunciada, que ingressou no Mosteiro da Esperança a 19 de Novembro de 1681, que a descobre, tendo-se iniciado a partir deste momento o princípio de uma adoração ao culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres que perpetuou-se até à actualidade.
Com essa descoberta, Madre Teresa da Anunciada, adopta uma atitude de profunda devoção em prol da imagem do Ecce Homo, acabando por criar uma relação de intimidade que a fizeram chamar de forma carinhosa a imagem do Senhor Santo Cristo de “seu Senhor” e “seu Fidalgo”.  
Esta devoção, começou por ser apenas vivida no seio da comunidade religiosa, mas rapidamente ultrapassou os paredes da mesmas, graças à madre Teresa da Anunciada, visto que para esta, a imagem do Senhor não podia estar pouco cuidada, sendo necessário fazer crescer a devoção em prol da mesma.
É graças a esse fervor, que é solicito ao rei D. João V, um subsídio para o azeite da lâmpada da capela, cujo alvará, datado de 2 de Setembro de 1700, concedia uma quantia de 12.000 réis. A finalidade recaia em manter constantemente acesa uma lâmpada de azeite diante da imagem do Senhor Santo Cristo.
De acordo com José Clemente, a adoração à imagem iniciou-se com o “desejo de colocar uma lâmpada para alumiar, toalha para o altar, capa e cana para a imagem.”3
A consolidação do culto ocorreu no decorrer do século XVIII, embalado com o acentuar do mistério e da devoção. A 16 de Dezembro de 1713, realizava-se uma procissão de penitência com o desígnio de solicitar a Deus o fim da crise sísmica que abalava a ilha.
A imagem acabaria por cair e em simultâneo cessava a actividade sísmica. É a partir deste momento que a imagem adquiriu a denominação de “Milagres”, dado ao milagre que ocorrerá após a queda, passando assim a ser chamado de Senhor Santo Cristo dos Milagres.4  
A adoração e dedicação de madre Teresa conduziram a que a mesma levasse a cabo a construção de uma capela condigna do “seu fidalgo”. A obra iniciou-se em Julho de 1697, contudo a mesma não foi do seu agrado. A 1702 arrancavam as novas obras da segunda capela, lavada a cabo pelos apoios dos Condes da Ribeira Grande, estes últimos os grandes patronos de muitos das jóias que hoje ornamentem o Ecce Homo. Com esta nova construção a imagem do Senhor passa a estar em maior destaque e visível aos fiéis.5
Madre Teresa da Anunciada teve toda a sua vida dedicada ao Senhor, tornando-se na sua primeira zeladora, cabendo à mesma preservar, embelezar e zelar pela imagem e respectiva capela, função que manteve até à sua morte a 16 de Maio de 1738.

Tesouro do Senhor Santo Cristo dos Milagres

O fervor em torno da imagem de sofrimento perpetuou ao longo dos anos, aumentando a veneração envolta ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, o “Senhor” dos ricos e dos pobres.
Detentor de um tesouro de valor incalculável, o património material que acompanha a imagem compõe um dos mais ricos tesouros religiosos do país, que continua a crescer de dia para dia, graças às ofertas realizadas por devotos e peregrinos, quer por devoção ou por gratidão pelas dádivas concedidas, continuam a opulentar as peças de joalharia e ourivesaria.
A imagem em madeira policromada, na qual é representa o Cristo sofredor na varanda de Pilatos, é adornada por magníficos exemplares de joalharia portuguesa, tendo as mesmas sido classificadas pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores como “Tesouro Regional” em 2015.
Este conjunto de jóias esplendorosas é composto por o resplendor, cuja singularidade fez com que fosse considerada a peça mais valiosa deste género na Península Ibérica, num congresso realizado em Valladolid, Espanha.

(Continua na página seguinte)

por Ana Catarina Rosa *

Share

Print
Ordem da notícia2223

Theme picker