Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (3)

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Opinião

Quando a nova bateria de copos acabou de ser posta em cima da mesa, o amigo Paulo Machado chegou-se à frente e disse que íamos provar vinhos do outro lado da ilha, isto é, da costa sul. Perguntei-lhe se as uvas amadureciam mais cedo e se os vinhos tinham mais álcool e menos acidez, atendendo à exposição sul. Para minha surpresa, recebi um “não” perentório e Paulo Machado acrescentou: as uvas amadurecem cerca de duas semanas mais tarde e os vinhos têm menos álcool e mais acidez. Explicou, depois, que chove menos, mas há menos luz, pois a linha de costa está muito mais perto do vulcão e há muitas neblinas, que penalizam a fotossíntese num período crucial para as cepas. Estava explicado o enigma.

O primeiro vinho a ser servido foi o Ínsula, Chão de Lava AA, de 2022, com 12 % (v/v) de álcool e 7 g/L de acidez total, de que foram produzidas 3262 garrafas. Como não tomei atenção ao rótulo da garrafa, pensei que o vinho fosse branco, já depois de o cheirar, mas, afinal, era um rosê à moda da Provença, que confunde muitos incautos, como eu. Devo confessar que nunca me entusiasmaram rosês tão deslavados e surpreende-me que a moda os tenha preferido aos rosês portugueses, de lindo e insinuante vermelho cereja. Porém, compreendo a decisão dos produtores, que têm de ir de encontro às regras do mercado para poderem pagar as contas ao fim do mês. Antes de falarmos no vinho, Paulo Machado explicou os “AA” a seguir a Chão de Lava, dizendo que era uma palavra havaiana que queria dizer “lava do tipo biscoito”, típica do vulcanismo do Havai e do Pico. Tive curiosidade de colocar o Google translator à prova e a resposta para AA em havaiano foi “desafio aceito”, pelo que recomendo cautela quando se utiliza uma ferramenta tão útil.
Estava cheio de curiosidade em saber as castas com que o rosê tinha sido feito e mais uma vez fui surpreendido pelo Paulo, ao dizer-me que eram as castas Saborinho (a Tinta Negra Mole da Madeira, mas que a lei obriga a chamar Tinta Negra, apesar de dar vinhos com pouca cor), Rufete e Malvarisco. O Saborinho não foi novidade para mim, pois sabia que existe no Pico há séculos, mas as outras duas surpreenderam-me. O Rufete, minha velha conhecida e que tenho tentado recuperar na Beira Interior e no Dão, não imaginava que existisse nas vinhas velhas da ilha. O Malvarisco, também é uma antiga casta do Interior Centro do Continente e resultou de um cruzamento espontâneo do Alfrocheiro (uma casta fundadora da viticultura Ibérica) e do Tinto Cão, uma das castas que mais admiro, pela intensidade e nobreza dos seus taninos. Paulo Machado ainda me disse que está em curso um movimento entre os produtores do Pico para resgatar ao esquecimento as castas raras das vinhas velhas da ilha, numa homenagem aos viticultores antigos e à sabedoria dos frades. 
Quando levei o vinho ao nariz não me surpreendi com o aroma discreto e pouco entusiasmante, mas antecipei logo que seria uma belíssima surpresa na prova de boca. Dito e feito! É, claramente, uma aposta ganha, que responde de forma eloquente à pergunta que eu fazia há dez anos atrás no Pico: Por que não fazem rosês com as uvas tintas? O vinho entusiasmou-me, mas devo alertar que este e, decerto, os restantes rosês da ilha, não devem ser colocados no balde de gelo antes de os servirem aos turistas. São vinhos quase iguais aos grandes brancos da ilha, que se valorizam com alguns anos de garrafa e servidos a cerca de 10 0C. 
O segundo vinho foi o Ínsula, Chão de Lava AA, 2022, com 12% de álcool e 7,5 g/L de acidez, feito com cerca de 4/5 de Arinto dos Açores e 1/5 de Verdelho e de que foram produzidas 5000 garrafas. A exemplo de todos os brancos já provados nessa manhã, estava excelente, apesar da acidez ser cortante. Daqui a algum tempo estará ainda melhor.
O terceiro vinho foi o Ínsula Verdelho, 2019, com 13% de álcool e mais de 6 g/L de acidez, de que foram feitas 3337 garrafas. Tinha uma linda cor amarelo palha, que denunciava alguma evolução e origem num ano de vindima chuvosa. Aparentemente, deve ser menos longevo que os produzidos em ano de vindima seco, mas de acordo com a experiência do Paulo, ao fim de 2 ou 3 anos a evolução do vinho estabiliza e deixa de envelhecer rapidamente. São estas surpresas, à revelia das regras tradicionais da Enologia, que tornam os vinhos do Pico segredos fascinantes para os verdadeiros enófilos. Escusado será dizer que o vinho estava excelente, com o aroma já bastante percetível e com uma complexidade de boca magnífica. Só faltava o oloroso polvo estufado do Pico para tornar o momento memorável.
O quarto vinho foi o Ínsula, Arinto, 2019, com 12 % de álcool e fermentado parcialmente em barricas. O vinho deu para encher 1435 botelhas e, como era previsível, não deixou os créditos por mãos alheias. Estava excelente e com a acidez no ponto. Pareceu-me, aliás, que tanto este como o anterior não eram mais ácidos do que os do Tito produzidos na costa norte e questionei o Paulo Machado. Ele sorriu e confessou um segredo: estes vinhos são feitos com mistura de uvas das duas costas! Seguiu, portanto, a receita dos grandes brancos da Madeira, feitos da mesma maneira.
A prova estava no fim e tinha sido triunfal, mas a maior surpresa ainda estava para vir.
Com o seu estilo discreto e inconfundível, Paulo Machado coloca em cima da mesa uma garrafa pequenina (0,375 L) com letras pirogravadas, que diziam: Ínsula, Chão de Lava, Pahoehoe, 10 years, Dry, DO Pico. Obviamente que tive de pedir ao Paulo para me explicar o que queria dizer aquele palavrão. Disse-me que era “lajido” em havaiano, não obstante o Google translator dizer que era “vazio”! Depois de me deitar algumas gotas no fundo do copo, constatei que era amarelo dourado, embora a cara do Paulo Machado insinuasse que devia ser ouro líquido. Ao levar o vinho ao nariz devo ter feito um esgar digno de fotografia, pois nunca tinha cheirado nada igual. Apesar de ser um pequeno volume de vinho, exalava um aroma surpreendente. Devia ter ficado ali um bom par de horas à espera que o copo contasse mais segredos, mas o Fábio olhava desesperado para o relógio. Tive, pois, de abreviar a prova que o vinho merecia. Ao primeiro gole senti o sabor do Pico na boca e não deixei de me emocionar, a ponto de exclamar: “Gente fina é outra coisa!” Estava perante um soberbo licoroso seco, com cerca de 30 g/L de açúcar. Terá sido feito com uvas do lajido sobremaduras, com base no Arinto dos Açores e Verdelho, de acordo com a técnica ancestral da ilha, apurada por Paulo Machado. Fiquei esmagado com o vinho e, se dúvidas tinha, deixei de as ter. Os maiores vinhos do Pico são, de facto, os licorosos, mesmo que os brancos, os rosês e, quem sabe, os novos tintos, possam ser deslumbrantes. O mesmo, aliás, se passa com o Douro, onde o licoroso é a “gente fina!”


Estou certo que a denominação de origem Pico ganhará rapidamente um lugar no Olimpo dos grandes licorosos do mundo se todos os produtores conseguirem fazer vinhos tão bons como este, a ser lançado dentro de dias.
Há manhãs de sorte!

 Virgílio Loureiro *
*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia. 

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