De regresso ao Pico dez anos depois (4)
Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (4)

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Opinião

O tempo voava e o nosso guia, Fábio Rocha, não deixava de olhar para o relógio. Tivemos, pois, de levantar âncora e rumar ao produtor seguinte, a já célebre Azores Wine Company. A viagem era curta e a paisagem de encantar, pelo que nem demos por o tempo correr. À entrada, via-se uma imponente vinha com os tradicionais currais reconstruídos e exemplarmente tratada, que não existia na última vez que tinha estado no Pico. Alguns dos muros eram novos e havia caminhos largos, por onde era fácil circular, a pé e de carro. Via-se que havia a preocupação de respeitar rigorosamente o passado, mas com detalhes que facilitam o duríssimo trabalho nas vinhas. Como o nosso guia conhecia muito bem a quinta, entrámos pelas traseiras e demos de frente com grande atividade. Uma moderna linha de engarrafamento trabalhava afincadamente e qual não foi o meu espanto quando constato que o vinho engarrafado era o “Adega do Vulcão”. O Fábio explicou-me que a Azores Wine Company presta serviços de qualidade a muitos dos produtores da ilha. Mais uma vez constatei que o Pico tinha mudado radicalmente nos últimos dez anos, havendo, pelo menos aparentemente, um espírito de entreajuda que aproxima os produtores e facilita uma estratégia comercial comum.
Mal saímos da carrinha, o Fábio apresenta-me o jovem produtor André Ribeiro, que estava a sair da sala de engarrafamento e produz o vinho “Entre Pedras”. Aproveitámos a oportunidade para ir visitar as suas vinhas, que ficavam duas centenas de metros acima da adega. Quando chegámos havia um lindo portão de ripas verticais vermelhas a delimitar a entrada, embora fosse fácil galgar o muro do curral e entrar na vinha. Quando entrámos, reparei que André olhava com toda a atenção para as cepas e para os cachos e, de repente, diz: já há aqui um pouco de podridão negra! E acrescentou: A produção é animadora, as uvas estão boas, mas até à vindima tudo pode acontecer. De facto, os dias que antecedem a vindima no Pico são de enorme tortura para os produtores, pois a chuva pode cair a qualquer momento e a ilha é um verdadeiro paraíso para os fungos da podridão.
A certa altura o nosso anfitrião disse que havia uma gruta por baixo dos currais de vinha e dosnossos pés e que ia lá buscar uma garrafa para me oferecer. E rematou: as uvas vão para adega para fazer o vinho e este depois regressa à vinha para estagiar, literalmente, debaixo das cepas! O nome do vinho não podia estar, de facto, mais bem escolhido: “Entre Pedras”.
Quando chegámos à boca da gruta fiz menção de acompanhar o André, mas ele não deixou, decerto por eu ser septuagenário (!) e por dias antes um visitante ter dado um trambolhão e ter ido parar ao hospital. Fiquei cheio de pena, pois queria ver, in loco, as raízes das videiras a pender do teto da gruta, saindo pelos poros da rocha vulcânica, como me confirmou o André. Aguardo, com expetativa, a fotografia dessas raízes, que ele me prometeu, pois explica o milagre da vinha (e das restantes plantas) na parte do Pico em que não há terra, embora a vegetação seja luxuriante.
Fiquei sem saber se a gruta é um tubo, formado por ação do fluxo da lava, ou um algar vulcânico, mas, ao que parece, ambos são frequentes no Pico, sendo a conhecida Gruta das Torres a maior e mais famosa.
Quando o André regressou da gruta, com a ajuda de uma corda, a garrafa que trazia estava fresca e disse-me que a temperatura era praticamente igual ao longo de todo o ano, sendo ideal para o estágio do vinho. No regresso à adega da Azores Wine Company vi duas aves de rapina artificiais a sobrevoar uma parte da vinha e o André confessou-me que os pássaros eram uma praga terrível. Também disse que o sistema anti-pássaros dava poucos resultados, pelo que arca com prejuízos que põe em risco a viabilidade económica do projeto. Fiquei apreensivo e fiquei com curiosidade em ter uma ideia da dimensão do problema. 
Como receava trazer a garrafa para o Continente, devido ao tempo de espera no aeroporto, decidi abri-la no dia seguinte, ao almoço, para me preparar para um caldo de peixe. Mais uma vez o branco foi maravilhoso, não obstante desconhecer as castas com que foi feito e os parâmetros analíticos. Era um branco da nova geração, muito mais fino dos que estava habituado a certificar dez anos antes, de uma pureza de aroma surpreendente e com uma prova de boca magnífica. Era o que eu chamo “um vinho que sabe (muito) mais do que cheira” e ideal para nos fazer companhia à mesa da refeição. Não tive oportunidade nem tempo para conhecer em detalhe o projeto, mas pelo que vi e pelas ideias do André estou certo que ele e o seu sócio Ricardo Pinto têm um futuro brilhante à sua frente, ainda que muito trabalhoso e com muitos escolhos pelo caminho, como os pássaros e a dificuldade em arranjar mão-de-obra para o cultivo da vinha.
Era tempo de rumar à adega que anda na boca de toda a gente e que, pelo aspeto exterior, marca a história dos vinhos da ilha com o “antes” e o “depois” dela.

 Virgílio Loureiro *

*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia. 

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