E poderemos nós partir e ficar?
Diário dos Açores

E poderemos nós partir e ficar?

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“Gosto de ver os outros irem, fico vendo, 
pensando no que tem na mala deles, 
o que ficou na casa, a família esperando.”

Há livros que nos confundem do início ao fim, que nos fazem perder e encontrar; quase como numa relação amor-ódio, em que na mesma página amamos e odiamos o que lemos. Ler Andréa del Fuego é assim!
Conheci esta autora na célebre série Herdeiros de Saramago, da RTP1, pois esta autora brasileira recebeu o Prémio Literário José Saramago. 
Neste livro, a autora leva-nos a um local pobre, sem luz, onde as casas não têm portas e o chão é terreiro. Ao ler estes livros, sinto sempre que sou uma sortuda por ter nascido num tempo em que não nos preocupamos com a água, que sai da torneira, com a luz, que aparece quando ligamos o interruptor, ou mesmo com a comida. Mais cara ou mais barata, está ao dispor de (quase) todos.
Mas nesta história não é assim. As necessidades ressaltam à vista, muito mais quando três crianças se veem órfãos após um raio que lhes atinge a casa e a vida, de noite, liquidando os pais. Nico, Júlia e António. São estes os personagens que dão vida a este livro. 
Os destinos de cada um, depois, são muito diferentes. Um dos rapazes, Nico, vai trabalhar com Geraldo, dono de muitas terras, o outro, António, vai para um lar de irmãs freiras e a menina, Júlia,a única, vai servir para a casa de uma senhoria. 
A qualidade de vida de qualquer um deles mudou, claro, mas nada pagaria a união daquela família. Não sendo possível, a separação foi inevitável. E eles vão crescendo, em ambientes diferentes, e sem nunca se esquecerem. O reencontro dos rapazes acontece a meio das suas vidas, quando o mais velho se vai casar. Sempre com a esperança de reencontrarem a irmã, os dois irmãos veem nela uma forma de recuperar, talvez, o apoio feminino e materno que lhes foi retirado. Mas este reencontro não acontece e a base destes rapazes fica partida. No entanto, Nico teve uma mulher na sua vida antes da sua esposa, a sua Maria. Tizica, que trabalhava para o mesmo patrão de Nico, cuidou dele, apoiou-o e sente-se um pouco perdida quando ele casa e vai seguir a sua vida. Porém, “bastava a Tizica ter sido margem de rio para o menino que cresceu, agora era Maria que ondulava o riacho”.
E o momento deste casamento, desta união, é tão simplesmente descrita que nos faz acreditar que esta gente era pobre em tudo, até, ou principalmente, na expressão do seu sentir e do seu viver. No dia do casamento, “Nico estava com vergonha de tanta gente por ele. Constrangedor mostrar a todos, ali em evidência, o tamanho do amor”.
Júlia também teve outro alguém que olhou por ela, que a amparou, na ausência da mãe; como se uma mãe fosse substituível. “Dolfina foi a mulher, depois das francesas, para quem Júlia olhava os passos acreditando que um dia viria atrás do outro. Uma convivência que traz a rotina, a constância que sustenta duas pernas debaixo de um tronco débil de sais minerais e nervos frágeis.” 
Por outro lado, António cresce rodeado de mulheres, mas sem saber o que são as fragilidades masculinas do desenvolvimento do corpo humano, escondendo-se entre tantas irmãs freiras, sem saber o que está certo ou errado! E depois vai descobrindo, igualmente, a diferença de ser diferente, de ser anão. No fundo, este livro destaca o pior e o melhor de cada personagem, desde o pior pensamento ao melhor ato de sobrevivência. 
É também um livro de memórias, de partidas e chegadas, de encontros e reencontros, seja com os que ainda vivem, seja com os que já partiram. É verdade. Neste livro encontramos também o surreal, aqueles que não vemos, mas que já vimos, os que procuramos, mas já não encontramos. Agora falo de Geraldina, mãe de Geraldo, falecida para o mundo terreno, mais do que viva para esta história. E ela vive na água, na terra, no ar que faz respirar o filho ou qualquer um destes três irmãos. É impressionante como alguém que não se apresente com um corpo humano marque tanto esta história, tal qual uma pessoa que, ao morrer, nunca deixa de estar no meio de nós. “E entre Geraldina e Geraldo sobrou nenhuma diferença, mistura de água com água, dividiram o mesmo veículo. Os dois unidos no suor condutor, na ponta dos dedos de Antônio. Com um gesto de repulsa, mandou longe os dois, soltos pelo ar dançaram mãe e filho.”
E as vidas deles vão seguindo; a de Nico e António em conjunto, com António a ajudar a cuidar dos filhos de Nico; a de Júlia sem eles, descobrindo em diversas paragens que se tinha perdido, quem sabe para sempre, daqueles que consigo partilharam o ventre da falecida mãe. Ela que também foi mãe e aprende a amar a vida que lhe vai surgindo debaixo dos pés, sempre sem os seus irmãos. 
Mas eles nunca perdem a esperança de reencontrarem a irmã, e Nico, principalmente, continua a acreditar, continua a esperar, como se disso dependesse a sobrevivência daquele triângulo perfeito e partido ao meio enquanto crianças. 
“Nico olhava para um lado, Júlia para o outro. Os olhares fizeram duas retas paralelas, ele por cima, ela por baixo.”

Boas leituras!

Patrícia Carreiro*
* Diretora da Livraria Letras Lavadas

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