Diário dos Açores

Rosário Girão aprecia ChrónicAçores vol. 2, 2011 (conclusão)

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Do mesmo modo, e no que respeita aos infindáveis dias de trabalho dos Açorianos, é o leitor informado de que “quase todos os locais [habitantes] trabalham pelo menos seis dias de longas horas, quando não é na agricultura que aí são sete dias... que as vacas não seguem calendários, nem feriados ou dias santos.” (2009: 86). Ainda nesta ordem de ideias, se é “devido aos professores que não faziam nada que o país está nesta crise”, esses mesmos professores terão doravante “de se matar a trabalhar para o país sair da crise.” (2009: 86). Prosseguindo neste contexto, confessa JC que não esteve presente no casamento de sua irmã, “que ia, finalmente, dar o nó com o Gil, que não era Grissom, como o da série CSI, antes pelo contrário.” (2009: 379). Quanto a Mia, terceiro grande amor de sua vida, ela “faleceu nos anos 80, JC estaria agora viúvo.” (2009: 257).
Parece ter soado a hora não do Juízo Final, mas de determinadas considerações, porventura impertinentes, sobre o valor e a originalidade indubitáveis de ChrónicAçores.
Primo: Obra de cariz autobiográfico, alternando pendularmente entre as memórias aconchegadas no baú (2009: 348), o autorretrato e a autoficção, ela é narrada não na primeira pessoa, como é sólito neste subgénero autorreferencial específico, mas na terceira pessoa ou, por outras palavras, numa não-pessoa (suporte de um discurso proferido por um eu e destinado a um tu) responsável pelo distanciamento algo irónico instaurado entre o Autor e o protagonista, entre CC e JC.
Secundo: Longe de privilegiar a narrativa retrospetivamente linear de uma existência em devir (e quem não desconfia da falácia dessas autobiografias cujo incipit é quase invariavelmente “Nasci”, nunca podendo ser o explicit “Morri”?), CC e JC tanto rumam a Timor e embarcam para Bragança como singram para a Austrália e arribam a Bali, percorrendo, desta feita, as várias fases da vida que, paralelamente às etapas da evolução social (os primeiros troleicarros que, em 1959, se estreiam no Porto, os entretenimentos dos anos 60 - King, canasta e paciências -, o programa 23ª hora na Rádio Renascença e a TV Rural de Sousa Veloso), se fundem e confundem, voluntariamente convocadas e mais ou menos inconscientemente interrompidas.
Tertio: Livro do conhecimento e da cultura, ele é, inequivocamente, um manual de aprendizagem - “Para quem não sabe”, informa JC (2009: 185) - nos mais variados domínios do saber, desde a geografia e a história, passando pela etnografia e pela sociologia, e desembocando na tradução e na arte do romance, proporcionando ao leitor o aprofundamento de uma ou de outra matéria precisa, deste ou daquele aspeto específico. Romance de um romancista de nome JC, e ao serviço do metarromance, a “circum-navegação” não deixa de servir os intuitos do antirromance, problematizando as fronteiras entre o imaginário e o real, equacionando os limites do vivido e do sonhado e questionando o tradicional conceito de romanesco, que começa, de súbito, a vacilar. A prova é que Daniel de Sá entra, nesta “circum-navegação” inovadora, como personagem, a par de João que, da personagem convencional, retém apenas um nome fictício...
Quarto: Surge, desta feita, o conceito de “circum-navegação”, suscetível de ser definido, em termos geográficos e literários, como narrativa autobiográfica de viagens. Se o espaço múltiplo vai fazendo o homem ao longo dos tempos do Tempo, o Autor vai escrevendo o livro ao mesmo tempo que se escreve a si próprio e que escreve sobre o outro que ele também é...
Tal escrita catártica (oscilando entre o passado ilusoriamente ressuscitado e o esboço do presente desatualizado) é regida quer pelo anelo de aprofundar o conhecimento do seu eu (não era “Conhece-te a ti próprio” a divisa do templo de Delfos?), quer pela vontade de fazer um balanço de vivências transatas, estabelecendo uma ponte para projetos futuros, quer pela ânsia de vencer o tempo e de triunfar sobre a morte...
Quinto: E que dizer, depois de conjugar o verbo circum-navegar, dos Colóquios da Lusofonia e dos Encontros Açorianos da Lusofonia, cujo Presidente, poeta da Crónica do quotidiano inútil e autor do Cancioneiro Transmontano, parece não ser J. Chrys Chrystello, mas JC, sequaz acirrado de uma certa lusofonia?
JC, aliás, irrita-se com a insignificância portuguesa “com manias de grandeza, que agora se reproduz em dez campos de futebol para estarem às moscas, para um aeroporto faraónico sem futuro, um TGV para espanhol ver e outras quejandas. É esta a Lusofonia que JC não quer.” (2009: 127-128). Aguardemos pacientemente o segundo volume da trilogia ChrónicAçores para podermos desvendar este enigma policial: No ‘rasto’ de JC...
Maria do Rosário Girão Ribeiro dos Santos, Fumane (moriente die), 6 de agosto de 2009

Chrys Chrystello*

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

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