Diário dos Açores

Um paralelo entre dois poetas-filósofos dos Açores e Cabo Verde: Antero de Quental e Eugénio Tavares

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As afinidades entre os dois poetas insulares (o açoriano Antero de Quental e o cabo-verdiano Eugénio Tavares, natural da Ilha Brava) - mantendo-se embora as suas diferenças de estilo e singularidade artística, que são a marca dos génios criadores – permitem-nos encontrar temáticas intertextuais e caminhos que se cruzam entre os seus universos literários. Desde logo, a sua mútua inscrição no movimento romântico e o entendimento partilhado de uma preocupação social e ética a atravessar os seus textos, onde avultam as ideias de justiça e liberdade a nortearem-lhes os itinerários como artistas e cidadãos. Em Antero, esta última faceta conduziria à participação nas Conferências do Casino, nas quais se pretendia abrir Portugal aos ventos da modernidade que sopravam da Europa, e em Eugénio Tavares traduzia-se sobretudo na intensa atividade jornalística denunciadora das injustiças e dando voz aos mais humildes e carenciados. Assim, a ideia da arte como pura forma é estranha a ambos, porque a arte é para eles um modo de conhecer e agir, de pensar e intervir, de inteligir e de sentir.
Um pensamento que sente, e uma sensibilidade que pensa: este poderia ser o lema da poesia pensante assumida pelos dois vates. No caso de Antero, essa complementaridade entre a obra poética e a de reflexão iria conduzi-lo à filosofia, ao escrever a obra Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Mas a sua poesia já é filosófica, como também a de Eugénio Tavares, pelas ideias que exprimem, em torno do tempo, da história, do amor e do sagrado. Nas Cartas, Antero dá-nos conta das suas leituras filosóficas, que acompanhavam a procura de um sentido para a existência, distanciando-se progressivamente de um inicial naturalismo imanentista para tomar o caminho de uma transcendência mística: (…) voltei a ler muito os filósofos, Hartmann (…) e, indo às origens do pensamento alemão, Leibniz e Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos (…).

Trata-se, para os dois poetas, de uma busca pessoal, social, cósmica e metafísica por – usando o título de um soneto de Antero – Mais Luz. O naturalismo não podia satisfazer esta busca, porque a luz natural da razão ilumina o mundo físico, mas não a alma. A condição humana, como existência corpórea e mundana, impõe-nos limites temporais e marca-nos com a finitude da nossa breve passagem pela terra. Os filósofos propunham uma superação  ontológica dessa condição: o Ser não se inscreve na matéria da caverna platónica – o mundo sensível – mas na idealidade das Formas, Ideias ou Arquétipos, que escapavam ao efémero ou transitório para se elevarem ao Absoluto e Eterno. A procura deste Absoluto pela religiosidade prossegue pela via de uma inquietação espiritual que, conforme Santo Agostinho, só repousa em Deus. Para Eugénio Tavares esta demanda do Absoluto, do Princípio ou do Fundamento corresponde ao Amor.

Em Eugénio, a cabo-verdianidade não é apenas uma condição territorial, geográfica, mas é igualmente uma condição poética, como nota Franklin Tavares, filósofo e especialista das culturas lusófonas, na sua obra Poésie et Créolechez Eugénio Tavares (Paris, Éditions d´Orgemont, 2017): (…) enquanto, na produção de uma obra, Hannah Arendt distingue o autor (auctor: inventor, inspirador) e o artifex (construtor), em Eugénio Tavares estas duas ações estão intimamente ligadas, porque é simultaneamente o auctor e o artifex da poesia cabo-verdiana (…) Não só colocou a fundação, mas também a aumentou (…) elevando essa cabo-verdianidade aos padrões poéticos.
Isto atesta a relevância da poesia para a construção da identidade cabo-verdiana. Porém, a esta dimensão poética junta-se uma dimensão filosófica, que Franklin Tavares considera conduzir a uma supra-ontologia do Amor, não representando um conceito nem uma categoria, não pode ser conceptualizado ou racionalizado, apresentando-se antes como um Absoluto incondicionado ou irredutível – nem sequer ao conceito filosófico mais abrangente ou (nos termos de Jaspers) englobante: o conceito de Ser: (…) o Amor é um Absoluto, que escapa ao Ser e a todas as suas categorias (…) o Amor (…) está para além do Ser. O Amor não se deduz. (…) O pensamento de Eugénio Tavares refaz todas as ontologias anteriores.
Quanto aos modos de dizer o Ser e o que está para lá para além deste, também Eugénio os revolucionou, ao elevar o crioulo – ou melhor, a língua cabo-verdiana, porque há no mundo diversos crioulos – a uma forma poética e musical, a da morna, expressão por excelência da cabo-verdianidade e do que não se pode medir, porque ca tem nada na es bida / Maior que amor – Não há nada nesta vida maior do que o amor - (Eugénio Tavares, Força de Cretcheu – A Força do Amor).

Antero e Eugénio reconheciam a transitoriedade, fragilidade e falibilidade da condição humana, mas ao mesmo tempo, acreditavam que, como dizia outro poeta cabo-verdiano – Pedro Cardoso -, mesmo na noite mais escura há sempre uma réstia de luz. Na Introdução às Novas Cartas Inéditas de Antero de Quental (Edições da Faculdade de Filosofia de Braga, 1996, p. 15), Lúcio Craveiro da Silva assinala os ideais marcantes, fundamentos ou princípios norteadores do poeta: A concepção do Universo como um Todo e uma Ideia Absoluta (…) nunca mais o abandonou. E essas Ideia transcendentais chamá-la-á Deus, Espírito, Alma universal, Justiça, Bondade (…). Para Kant, estas Ideias não podem ser demonstradas logicamente ou ser objeto de conhecimento científico, sendo antes objeto de crença. O chamado niilismo, que parte de Nietzsche para o nosso tempo, proclama a desvalorização de todos os valores, o fim de quaisquer ideais e o não acreditar em nada. Mas Kant, após ter estabelecido os limites do conhecimento demonstrável, conduz-nos a crer numa ordem moral tornada num imperativo que responde às questões sobre o que devo fazer? e o que posso esperar”. Pela Filosofia implícita na sua Poesia, Antero e Eugénio mostram-nos um percurso conduzindo à crença em Ideais pensados e vividos, a uma mística do Amor, da Justiça e da Verdade. Não seria em função destes ideais, e da sua concretização, que deveríamos hoje conceber a educação?

                        Carlos Bellino Sacadura

 

 

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