Diário dos Açores

Madalena Férin revisitada

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Tarefas infinitas, é o que é

A Helena Crystello

A muito recente descoberta — absolutamente casual, de resto — do texto com que Madalena Férin participou, em 1982, num colóquio na Faculdade de Letras de Lisboa, onde estudava Filosofia, sobre o francês Roland Barthes (1915-80) e publicado nas respectivas Actas pela Dom Quixote,1 veio tarde de mais para que ele pudesse ser incluído em É Preciso Romper o Amanhã. Madalena Férin revisitada, lançado em Julho pela Companhia das Ilhas, a par de outros trabalhos dispersos, como os que dedicou a Antero de Quental e a Antonin Artaud nos inícios da década de 80, que é a do arranque da sua mais intensa produção literária, considerando já o seu primeiro romance, O Número dos Vivos, impresso em 1990.
O texto «O sujeito à deriva» é assinado em primeiro lugar por Maria da Conceição Mendes, que presumo seja uma colega de turma de Madalena Férin. Reproduzido aqui num extracto apenas, lido como próximo do que mais lhe importaria (as secções finais, «A escrita como desejo» e «O lugar do sujeito»), podem os aficionados da escritora mariense — insista-se nisto, pois parece haver quem duvide! — separar a folha do jornal e dobrá-la dentro do meu livro, e «fica resolvido». Todavia, o gesto mais relevante será outro. O de reflectir 1) sobre a imperiosa salvaguarda, conservação e divulgação dos espólios dos escritores açorianos, onde, em princípio, papéis como este são facilmente localizados; 2) sobre a indispensável identificação da bibliografia açoriana, incluindo a inclusa em periódicos, dando profundidade e também continuidade aos trabalhos de João Afonso, até 2004 (parte do qual ainda hoje inédito), e de Chris Chrystello, até 2018; e por fim, 3) sobre o contributo — que tão enfraquecido está — da Universidade dos Açores para o estudo e edição dos escritores deste arquipélago. Porque, na verdade, só estas três campanhas devidamente conjugadas, caminhando a par, diria mesmo, nos podem aproximar de uma história literária açoriana tão assertiva e actualizada quanto possível.
Para os espólios é determinante a iniciativa do Governo Regional, que tarda desde há muito. Para a bibliografia açoriana importa que bibliotecários de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Horta (eventualmente, também outros) se apliquem num trabalho em rede de médio e longo prazo, organizando tarefas, partilhando meios e evitando sobreposições. E para os estudos literários na Universidade dos Açores bastará que não falte a orientação de mestrandos e doutorandos para que dediquem os seus próximos anos a autores da Região.
Se a criação contemporânea merece estímulo e protecção, como registo e retrato da actualidade (e merece-o certamente), a redescoberta e revisitação de autores antigos e modernos, a que chamamos cânone, não é de somenos. Só a «concorrência» dinâmica, leal e solidária entre pares do mesmo ofício editorial — outro desígnio por alcançar, e não dos mais fáceis, pelo que se tem visto — pode acelerar o resgate de valores quase esquecidos, pois esse é certamente um campo de tarefas infinitas, porque sempre incompletas e sempre exigentes — como este achado de mais um escrito de Madalena Férin agora veio súbita e lucidamente nos recordar...
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O texto para Barthes é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai. Lê-lo é entrar em conotação, em entrecruzamento. Ao tratar do sentido denotado a linguística positiva descobre um sentido improvável, irrreal, obscuro de tão atenuado; remete-nos desdenhosamente para uma linguística fantasiosa em que o sentido resplandecente se enuncia. Aí entrevejo como num sonho o sentido banhado de luar, onde se apercebe vagamente a angústia, a impostura de uma situação, com muito mais ntitidez do que uma história que acontece.
A pertinência quando existe, apenas surge de raspão: é a voz off do sujeito.
O discurso progride segundo uma dialéctica com dois termos: a Doxa e o seu paradoxo, o cansaço e a frescura, o estereótipo e a inovação.
Esta dialéctica binária é a própria dialéctica do sentido e do jogo freudiano.
[...]
Tirar essa máscara sob a qual a linguagem se esconde e que nos afasta da realidade é desvendar o segredo que reside sob a palavra e libertá-la da carga do significado através de uma nova ética do signo e por conseguinte da escrita.
A «verdade» da escrita fica entre as duas faces do signo, entre o singular e o plural, o pretérito e o presente, numa duplicidade de significantes nesse «tempo para nada».
É aí que se abre a fenda donde surgirá a escrita. Ela não habita o presente, viaja sem passado, sempre disponível ao tempo, a um tempo circular, como que num movimento sem tempo. É o estar aí e agora nesse espaço ocupado por uma pequeníssima fracção de segundo, é o Dasein de Heidegger, é o ser em situação.
É deste estar aí que surgirá a escrita branca, neutra, amodal, liberta de ideologias. Ela é a prefiguração de um mundo paradisíaco onde a linguagem não será mais alienada, transformando a multiplicidade das escritas na própria utopia de linguagem, utopia esta que fará emergir, confrontando a Lei, a Norma e toda uma linguagem do poder, a palavra total e levando para bem longe esse sentido até quase à sua dissolução, à sua morte, ao «grau zero» da escrita, ao desejo de libertação do significante, ao desejo da escrita. Desejo este que vai sempre ao encontro atópico do prazer, ao gozo infinito do texto. Desejo jamais saciado porque não tem objecto, tem-se a si mesmo, é desejo sempre em reprodução.
«E depois? — que escrever agora? seríeis ainda capazes de escrever alguma coisa? —escreve-se com o desejo e eu não paro de desejar» (Roland Barthes por Roland Barthes).
A escrita de Barthes aparece-nos como desejo do outro e supõe reversivelmente o outro como desejo. É no espaço, na distância que vai da identidade à alteridade que se insemina a escrita enquanto «desejo de discurso», o qual não é senão «discurso de desejo».
Vista nesta óptica a escrita é algo que pretende ultrapassar a linguagem. Ela começa lá «onde não há nada para dizer», por isso é o lugar de liberdade, é o produto de um circuito pulsional que se estabelece no corpo desejante do escritor, corpo que é presente da escrita, desejo, gozo, fruição.
Nesta perda a escrita adquire o seu valor erótico lá «onde o corpo consiste e o sujeito desiste.»
[…] O sujeito gnoseológico que ainda em Kant nos aparecia revestido da nostalgia do ontológico é agora posto em causa.
A verdade surge como uma agressão. O conhecimento não é algo de pacífico, mas sim polémico, implicando uma luta.
O homem é apenas uma estrutura de liberdade que pode ter várias denominações. A sua liberdade é inserida numa estrutura de acção onde não está só.
Barthes «mata» o sujeito gnoseológico para criar um sujeito estético cujo predomínio é o da palavra, deixando-lhe apenas o lugar onde, a possibilidade.
Ele propõe uma «filosofia pluralista» na qual o homem assume a sua multiplicidade, criando uma nova ética do signo, contribuindo para um novo posicionamento face ao mundo.
O homem barthesiano encontra-se numa atitude de devir e desejo, num permanente transitar entre as suas margens que o fará advir, talvez, num outro ponto da espiral.

Manuela da Conceição Mendes e Madalena Férin
Extractos de «O sujeito à deriva», in Leituras de Roland Barthes,
Lisboa, Dom Quixote, Outubro de 1982, pp. 141-47.

1 Participaram no colóquio de dois dias «Leituras de Roland Barthes», Luísa Costa Gomes, Miguel Tamen, Luís Miguel Nava. E Stephen Reckert, José Carlos Seabra Pereira, Maria de Lourdes Belchior e Ofélia Paiva Monteiro, entre uma dezena de outros.

 

Vasco Rosa

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