Diário dos Açores

Respeitar o Parlamento e a função de deputado

Previous Article Guerra - Um retrocesso civilizacional
Next Article ‘Balbúrdia no Oeste’ ou a ‘Oeste Nada de Novo’

Esta semana, dada a relevância política das discussões sobre o Plano e Orçamento para 2024, passei algum tempo a seguir a transmissão direta dos trabalhos parlamentares.
Nos idos de 80 e 90, ainda no pavilhão pré-fabricado da Assembleia, acompanhei a discussão desses e de outros diplomas. O mais interessante foi, sem dúvida, a Proposta do Estatuto Político-Administrativo, em 1987, pelas alterações unânimes que recebeu de todas as bancadas, do PCP ao CDS. O Projeto-lei ainda mereceu a aprovação unânime da Assembleia da República mas, por pressão de setores militares junto da Presidência da República, o texto foi  chumbado e transformou-se num fato político conhecido como “a guerra das bandeiras”.
Nesses primórdios da Autonomia não me recordo de ter assistido a significativos desaguisados entre adversários políticos.
As intervenções eram escutadas com respeito e contestadas nos tempos regimentais próprios, com o mínimo de apartes que interrompessem a opinião dos intervenientes.
Para tal contribuiu a experiência parlamentar e a competência jurídica de Álvaro Monjardino, figura a que a Região Autónoma muito deve. Passou, entretanto, quase meio século.
Quando se julgava que o primeiro órgão da autonomia político-administrativa ganharia dignidade e prestígio perante os eleitores e a competência dos deputados eleitos, eis que nos deparamos com cenas pouco dignas e pouco edificantes: são constantes à partes de contestação ou de apoio que causam um ruído incomodativo a quem segue o debate; são ditos quase arruaceiros, contrariando a urbanidade e o bom senso que deviam existir num órgão de representação democrático; são protestos e contra-protestos de baixa-política, acusações por tudo e por nada, enfim... a militância ao seu nível menos aceitável, fazendo lembrar manifestações de doentia clubite, frequentes em estádios de futebol.
O próprio Presidente da Assembleia Legislativa Regional, num dos dias, consciente da má imagem que o Plenário transmitia aos espetadores, viu-se forçado a chamar a atenção dos deputados para os efeitos negativos que esses comportamentos gerariam nos cidadãos e eleitores.
O tempo político que vivemos é propício à defesa de posições antagónicas e inconciliáveis. Os agentes políticos, porém, devem ter a preocupação de, em qualquer circunstância, discutir ideias, projetos, propostas, com elevação, urbanidade e argumentação para dignificar o cargo político exercido e a representação de que foram incumbidos pelo eleitorado.
Da sessão parlamentar de discussão do Plano e Orçamento e como cidadão preocupado com o futuro deste arquipélago de NOVE ILHAS, gostava de ter ouvido explicações sobre: que áreas e setores de atividade carecem de mais investimentos e de novas competências académicas para que os jovens, nas ilhas onde pretendem viver, atinjam uma vida digna e saudável? Que mudanças introduzir no tecido social e económico para que os ativos menos qualificados passem a ter salários mais dignos e socialmente mais justos? Que projeto económico e social se pretende para os Açores nas próximas décadas e que medidas tomar para fazer face ao inverno demográfico que já estamos a viver? Quais as teorias económicas que melhor respondem a estas prementes questões? O que pensam de tudo isto e que propostas têm as diversas forças políticas?... E poderia continuar o rosário de interrogações que assolam a mente de qualquer cidadão.
Ao ouvir a discussão sobre o Plano e Orçamento para o próximo ano, o que imperou foi a elencagem de um conjunto de ações e respetivas verbas orçamentais. Algumas delas percebemos os objetivos.
Na área da saúde aceitamos a importância de certos investimentos, no entanto, ao construir-se um centro de saúde na Ribeira Grande ou nas Lajes do Pico, ficou por dizer se está subjacente uma nova e mais eficaz estratégia para a prestação dos cuidados de saúde, ditando esses e outros centros de novas valências, como reclamam os cidadãos.
Construir mais betão, como aconteceu até agora já não chega.
As novas tecnologias devem proporcionar novas e melhores respostas aos utentes de ilhas sem cuidados de saúde diferenciados.
Manter o sistema tripolar não responde, nem a uma população cada vez mais envelhecida, nem ao aumento do número de visitantes nacionais e estrangeiros, pois a atratividade turística dos Açores impõe uma reformulação e melhoria das respostas do Serviço Regional de Saúde em todas as ilhas.
Nas outras áreas, os telespetadores do Plenário parlamentar limitaram-se a ouvir o desbobinar de milhões e milhões, como se os euros fossem a salvação de todos os problemas dos transportes, da habitação, da pobreza, da educação, das pescas, da agricultura, etc. etc.
Na verdade, assim não é e os dados sobre o nosso sub-desenvolvimento social e económico comprovam-no, ano após ano.
Dá a impressão que os deputados vivem num mundo à parte, confinados dentro de quatro paredes, trabalhando em circuito fechado, cingidos a estratégias políticas e a cartilhas retóricas definidas. As suas razões, raramente coincidem com as do eleitorado. Por isso, os cidadãos cada vez mais se afastam de quem, atingindo o poder, julga-se seu dono e senhor.
Exige-se, pois, uma séria reflexão sobre o processo Autonómico em curso e sobre os seus agentes.
Chumbados os dois documentos espero que os próximos apresentem ideias claras e estratégias bem definidas sobre que futuro se antevê para os vários setores de atividade, não cedendo a projetos paroquiais insensatos que podem servir para alindar localidades, mas não geram riqueza, nem bem-estar. E que os deputados dignifiquem a instituição para que foram eleitos e respeitem as preocupações de quem os elegeu, mais que o emblema partidário.
O seu lema deveria ser a magistral definição de Aristóteles:” A política não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça.”

José Gabriel Ávila*

*Jornalista c.p.239 A
http://escritemdia.blogspot.com

Share

Print

Theme picker