Reimaginando a democracia açoriana
Arnaldo Ourique

Reimaginando a democracia açoriana

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“É mais do que importante, é impreterível, reimaginar a autonomia administrativa. Temos que construir um modelo, convencionando-o com a nossa experiência em conjugação com a do Estado na base do princípio de quanto mais longe estivermos do centro mais perto estamos da periferia”

 

Estamos com quarenta e cinco anos de democracia autonómica. É um passado com história, isso é inegável, e desde logo se comparado com o da Madeiraque tem um fio condutor político unitário e bolorento por estar em governo apenas um único partido político. Nos Açores temos três fases políticas distintas: a 1º fase do PSD entre 1976 e 1996, de criação e implementação da autonomia e das estruturas básicas da sociedade; a 2ª fase do PS, daí até 2020, 3ª fase,de afinação e desenvolvimento das estruturas sociais e políticas; e a atual, a3ª fase de 2020, um governo de coligação e com acordos de incidência parlamentar.
Esta história recente tem uma consequência óbvia que já apontamos: a partir de agora já é possível a comparação das políticas atuais com as políticas da 2ª fase. E essa comparação poderá constituir-se de muito negativa ou muito positiva para os governos atuais: designadamente em matéria de legislação, se os governos corrigirem os diplomas da 2ª fase que espremem direitos fundamentais, eis, à partida, uma atuação positiva; se não se fizer essa correção, o seu significado é o de que se concorda com essa legislação e, pois, eis, claramente, uma atuação negativa. Outro exemplo: se os governos não derem o salto na qualificação da autonomia – na parte administrativa (tenha-se presente que a autonomia é político-administrativa, isto é, consiste num poder de legislar, com governo e administração próprios) – é evidente que concordam em manter o sistema antigo e ainda em vigor; e isso é muito negativo: a administração moderna não consiste na utilização de meios eletrónicos de acessibilidade poderosa; essa utilização é uma mera decorrência do avanço tecnológico. Uma administração moderna requer uma organização inteligente (mobilidade de competências) e uma direção inteligente (competências de mérito). Embora sejamos todos de parecer de que existe uma administração pública nos Açores, ela aí está; mas não é essa administração que a autonomia exige. Sendo a autonomia política um elemento fundamental na ordem jurídica e política do país – ela exige governos competentes, mas igualmente uma administração condizente, ligada, mas autónoma dos membros de governo, e onde prolifere o saber e as decisões competentes porque baseadas em pareceres competentes e não de pareceres jornalísticos, de algibeira e de amigalhaços, de faz-de-conta, uns despachados de saber e outros conscientemente ignorantes, de conivência, de bajulação, de porreirismo. Não a uma administração que é meramente um manancial de fatores ao saber de cada membro do governo; e sim a uma administração que entrega a esse governo os resultados científicos e técnicos, e não à que gasta milhões de euros por ano para servir os governos em vez das populações.
É mais do que importante, é impreterível,reimaginar a autonomia administrativa. Temos que construir um modelo, convencionando-o com a nossa experiência em conjugação com a do Estado na base do princípio de quanto mais longe estivermos do centro (numa ausência de relação de proximidade de competências partilhadas), mais perto estamos da periferia (sozinhos e baseados apenas nas queixas da centralidade do Estado).
Na 1ª fase da autonomia, 1976-1996, dos seis governos existiu sempre uma secretaria regional da Administração Pública; mas a sua ação foi mais de implementação e sem inovações. Na 2ª fase, 1996-2020, as coisas pioraram: nos seis governos, não só nunca existiu uma secretaria regional para a Administração Pública – como nem sequer a matéria era mencionada nos títulos dos departamentos. E agora, no atual XIII Governo Regional, não existe nenhuma também, embora a matéria faça parte do título da secretária regional das finanças. Podemos dizer que os governos do PSD davam valor a esta componente da autonomia e que agora deixaram de o fazer; e que o PS promoveu um desprezo total. Também se pode concluir: o PSD, apesar de tudo, tem uma melhor visão da autonomia açoriana; embora nunca tenha sabido fazer a elevação desta matéria estrutural da autonomia. O PS, reconhecidamente mais voltado para a captação do eleitorado, nunca lhe deu qualquer valor, aliás arredou-a inteiramente. É prova suficiente essas conclusões?:sim! Claramente, porque ela é estrutural da Autonomia; porque se ela é estrutural em todos os programas de governo de todos os governos, logo, sem possuir a sua base normativa – está tudo dito. E acresce a experiência: um desastre nuclear, como temos aqui demonstrado, por via do conhecimento da legislação regional, ao longo dos anos em milhentas matérias orgânicas.
O Estatuto Transitório dos Açores de 1975 previa a Junta Regional, dirigida por um Governador Militar e seis vogais, que geria as ilhas em função de matérias; ela governava na base da administração existente porque não existia outra, e tinha aliás a função da restruturação da administração dos Açores. O Estatuto Provisório de 1976 previa dois capítulos para a Administração Pública e o funcionalismo público, ou seja, dava valor à organização administrativa; e isso foi aprimorado pelo Estatuto Definitivo de 1980, incluindo a atualização mais recente de 2009. Isto é: apesar de um historial  de alguma pobreza técnica, a autonomia, nesta vertente de Administração Pública, está hoje, em termos estatutários, bem desenvolvida: por um lado, no 1º artigo (Autonomia Regional) é relevada junto da vertente política e legislativa, financeira e patrimonial, e no seu 7º artigo (Direitos da Região) ela é um direito, tem um formato de mobilidade e complexidade próprias; e, por outra banda, ela ocupa dois capítulos do Estatuto, mantendo, apesar disso, pouco desenvolvimento das regras gerais. Isto é: em termos de princípios, especificamente constitucionais (regime político-administrativo) e estatutários (como vimos supra), a Administração Pública é estrutural na Região Autónoma.
Temos os princípios, temos as leis fundamentais, enfim, temos a teoria. Na prática temos a administração que tínhamos em 1976, mas com mais uma ressalva, e negativa: de 1976 a 1996 ao menos existia um departamento que podia ter permitido avanços orgânicos, mas desde essa data não temos nem departamento nem nenhuma hipótese de a pensar, melhorar ou avançar. Em termos de autonomia administrativa ficamos presos no tempo; e a nossa luta de séculos estava neste pormenor administrativo, porque que é na plasticidade competencial e organizacional da administração que as políticas tem realização. E eis, ainda mais, que aconteceu o que de pior nos podia ter acontecido: o ideário de que a política servia para decidir com capacidade e a administração para garantir a melhor eficácia dessas decisões, sofreu uma metamorfose negativa; o que era para servir as populações insulares, tornou-se, em muitos aspetos, sustento amigável do lucro político.


Título respigado da discussão virtual “Reimaginning American Democracy”, da Freedom House, de 16-12-2021. Para verificação das leis citadas, pode consultar-se: Arnaldo Ourique, Política da Organização Governativa dos Açores nos 40 anos de Autonomia. Quatro Décadas de Leis Orgânicas dos Governos da Região Autónoma, Angra do Heroísmo, junho 2017: Amazon, 2018; Arnaldo Ourique, Estatutos da Autonomia Política da Região Autónoma dos Açores – 40 anos de Política Estatutária, Angra do Heroísmo, 2017: Amazon, 2018.

 

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