Representatividade
Arnaldo Ourique

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“Se a Região Autónoma tem poderes de res publica, especialmente por via do poder legislativo exclusivo, logo, é detentora de soberania, uma soberania regional que consiste na capacidade para governar o território regional em todas as áreas em que o Estado não tenha capacidade; ou melhor, e mais corretamente: em todas as áreas em que a Região Autónoma seja competente.”

 

Para o Estado são órgãos de soberania política o Presidente da República, PR, a Assembleia da República, AR, e o Governo da República, GR. Mas entre os três existem diferentes graus de representatividade política. O PR representa a República Portuguesa; isto é, a Constituição não o apresenta como sendo representando diretamente as populações no sentido institucional do termo, embora o seja porque é eleito por sufrágio universal e direto dos cidadãos portugueses. Isso advém do facto de ele ter por funções garantir o regular funcionamento das instituições democráticas, a independência nacional e a unidade do Estado. Ele é, pois, um fiscalizar e tem poderes efetivos para dar efetiva garantia desses poderes. Ao representar a República ele representa afinal tudo, porque a República é formada por um povo, por um território, por um governo e instituições políticas e públicas e todo o património que constitui a cultura humana dessa República. O PR está, portanto, para além das mundividências da política governativa e legislativa. Numa palavra é o guardião da democracia. Quem tem o mérito de representar todos os cidadãos portugueses é a AR, porque é nela que os cidadãos depositam, através do seu voto por sufrágio universal e direto, a capacidade para criar as leis por que se vai reger toda a sociedade, pública e civil, incluindo os poderes constitucionais de todos os órgãos de soberania, políticos e administrativos. Subsiste uma diferença subtil, mas significativa entre a AR e o PR: uma coisa é garantir a normalidade democrática, outra é determinar as grandes opções políticas do país. Mesmo quando, em situações excecionais, o PR pode criar um governo escolhido por si próprio, isso é feito pontualmente e numa circunstância especial de ausência de parlamento eleito legitimamente e com um governo legítimo; isto é, essa capacidade para criar um governo é para suprir uma omissão transitória e não para a normalidade democrática. Em todo o caso, sendo o PR eleito diretamente pelo povo, evidentemente que é um representante direto do povo; não tem a dimensão de globalidade que a AR, mas tem-na na especialidade de suas funções. E, por fim, o GR representa o Estado porque é ele que tem a capacidade da condução da política geral do país e é o órgão superior da administração pública.
Se a Região Autónoma tem poderes de res publica, especialmente por via do poder legislativo exclusivo, logo, é detentora de soberania, uma soberania regional que consiste na capacidade para governar o território regional em todas as áreas em que o Estado não tenha capacidade; ou melhor, e mais corretamente: em todas as áreas em que a Região Autónoma seja competente. A Constituição determina que são órgãos próprios da Região Autónoma a Assembleia Legislativa, AL, e o Governo Regional, Gr. A Constituição teve necessidade de dizer «órgãos próprios» porque a Região Autónoma possui mais um órgão regional da República, o RR, e tem ainda nas suas funcionalidades políticas a intervenção de um órgão nacional, o PR. Em rigor, portanto, a Região Autónoma possui três órgãos com sede política nos Açores: dois que são regionais, AL e Gr, e um órgão regional da República (e que tem sede em Angra do Heroísmo), RR; e mais um, com sede nacional em Lisboa, e que, não sendo órgão regional da República, funciona como tal quando é necessário, PR.
Estas matérias são difíceis de entender – porque usam uma linguagem hermética que necessita interpretação constitucional (incluindo histórica; a sua evolução ajuda a sua caraterização e compreensão). Mas o Estatuto Político dos Açores coloca-nos dificuldades teóricas quando determina: 1º, que os dois órgãos próprios assentam na vontade dos açorianos; 2º, e sobretudo quando institui que a Região Autónoma é representada pelo Presidente da AL, PAL, e também pelo Presidente do Gr, PGr, no exercício das suas funções. Essa linguagem e nesse específico lugar – embora aprovada pela AR, porque o Estatuto é aprovado por uma lei proposta pela Região Autónoma e aprovada pela AR – é incorreta para uma lei que tem valor reforçado, quer pelo seu regime especial de criação (e modificação); e sobretudo porque é a lei política que desenvolve o regime autonómico previsto na Constituição; a talhe de foice veja-se a obra “Leis Fundamentais de Portugal”. As únicas instituições em Portugal que representam diretamente o povo – são as que o povo elege diretamente por voto universal. E as únicas instituições políticas com esse valor são a AR, o PR e a AL. Existem outras instituições que têm essa representatividade, ao nível local, as câmaras e as assembleias municipais, e as assembleias de freguesia; enfim, as que são eleitas diretamente pelo povo por voto universal.
Quando o Estatuto Político dos Açores declara que a Região Autónoma é representada pelo PAL – está a declarar um erro e a provocar confusão. O PAL apenas representa a AL; esse deputado que é eleito PAL deixa de ser deputado e por isso nem sequer é um deputado, pois são os deputados, enquanto munidos desse estatuto, os únicos que são diretamente representantes do povo. O PAL não representa os deputados; e não representa a Região Autónoma. Apenas representa a AL nas suas relações com outrem, quer nas relações políticas, quer nas relações administrativas. Nunca representa a AL para lá da representação institucional. E quando o mesmo Estatuto determina que o PGr no exercício das suas funções representa a Região Autónoma – isso é meia verdade: é verdade se a norma estivesse no lugar próprio do Estatuto, no que se refere às atribuições do executivo regional; mas não é verdade quando isso está escrito na disposição inicial do Estatuto sobre a representação política da Região Autónoma, logo a seguir à norma que institui que os órgãos de governo próprio assentam na vontade dos açorianos.
Apesar dos governos da 2ª fase da política regional de 1996 a 2020 ter construído um Estatuto em muitos aspetos errado ou incorreto – isso não quer significar que os governos façam uso desse modelo desprestigiante. O comportamento institucional deve obedecer às regras democráticas passando por cima das regras “malditas” para que não se tornem a regra geral e assim formatar os cidadãos com informações ou conhecimentos errados e equivocados.
A representatividade dos açorianos está exclusivamente nos deputados da AL (e, num âmbito mais alargado, nos deputados da AR) – nunca está nem no PAL e muito menos estaria no PGr. E a Região Autónoma, como pessoa coletiva, é representada pelo PAL em questões institucionais políticas e administrativas e pelo PGr enquanto presidente do Gr que a representa em termos de responsabilidade. A Região Autónoma, enquanto instituição política, é representada pelo seu povo através dos deputados da AL. O Estatuto Político dos Açores está, nesta matéria, erradamente organizado e mal escrito. A unidade regional ajusta-se e floresce se fizermos as coisas com qualidade; fingimentos nobiliárquicos não são bem-vindos a democracias jovens e em construção.

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