Ilha do Pico: um carnaval singular

Ilha do Pico: um carnaval singular

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1.-Quando o avião se fez à pista, começaram a surgir os currais de vinha, numa extensão há muito não vista, coberta que estavam de incensos e de faias.
São dezenas e dezenas de alqueires onde os donos cultivavam figueiras e árvores de frutos do estio, que durante décadas se vendiam na cidade da Horta. Os que sobravam desse comércio de rua que alimentava tantas famílias, eram destilados para saborosas aguardentes com que se pagava a jorna aos “homens de fora”.
Há séculos que a Montanha assiste a estas transformações, fustigada por ventos que a cobrem de chapéus multiformes, premonitórios de alterações meteorológicas que a sabedoria popular sabe descodificar, ou nua e esbelta, manifestando a sua pureza e imponência, num triângulo  desigual que integra as diferenças.
Que espetáculo tão belo o que nos acolhe ao pisarmos o solo da ilha. Ficamos enlevados pelo perfume das flores do incenso e pela pureza do ar seco e saudável que cura as maleitas e nos dá novo vigor para recordarmos a memória dos anos.
A Ilha do Pico é assim: remédio para a alma e para o corpo.
Não há quem lhe fique indiferente, quem rejeite a rudeza do seu corpo, quem desgoste do negrume do seu basalto, quem não se deleite com as investidas do mar nos pesqueiros altos, quem não se entranhe nas profundezas das suas grutas e cavernas, quem não se atraia pela altitude da sua Montanha, quem não aprecie a cultura das suas gentes, a sua resiliência, afabilidade, alegria e franqueza.
Mesmo sem grandes expetativas face ao recente cenário bélico, a ilha prepara-se para oferecer as casas rurais aos veraneantes estrangeiros que optam por espaços típicos e sensações singulares.
2.- Em ambiente carnavalesco, embora com restrições pandémicas que cansam demais a normalidade da vida, manteve-se, em ambiente sigiloso e ao ar livre, o tradicional Bando da Piedade.
É uma tradição muito antiga, cuja origem remonta às cantigas de escárnio e maldizer, e que pelo Carnaval são gostosamente percebidas pela população.
O “Testamento da Burra” é tradicionalmente declamado num local central da freguesia, tendo atrelada uma burra mansa.
O texto do “testamento” da inditosa alimária, escrito em quadras por um grupo de “observadores” locais, foi, este ano, na sua quase totalidade declamado pelo Nelson Vais, secundado por outros “atores” que, de improviso ou não, anunciaram a quem caberiam todos os órgãos e pertences da falecida burra.
Como nas cantigas de escárnio e mal-dizer, nada nem ninguém escapa à crítica do Bando: do âmbito mais geral, como o conflito Rússia-Ucrânia, às atuações de governantes locais e regionais, passando pelos fatos e casos mais “caseiros”, tudo passa pelo crivo dos críticos e “maledicentes” promotores do Bando. E fazem-no sem ferir ninguém, com as apreciadas piadas brejeiras. No  termo de cada quadra, todos aplaudem a crítica, com um cavernoso som, imitando a linguagem do animal.
Tal o interesse da população por este número do Carnaval que, se não fosse a pandemia, o Curral da Pedra (no centro da freguesia da Piedade) teria uma numerosa e atenta assistência das freguesias da Ponta.
Embora não tenha sido dada tolerância de ponto aos funcionários da administração pública, por tradição, a terça-feira do Carnaval celebra-se, festivamente, com doçaria e gastronomia típicas da quadra que coincide com as muito frequentadas matanças dos porcos que juntam famílias e amigos em alegres convívios.
Ainda há, felizmente, muitas celebrações que as populações rurais mantém bem vivas. O Carnaval é uma delas.
O Bando da Burra é um evento cénico carnavalesco que importa manter.
3.- Os jovens em idade escolar, devido ao seu espírito crítico, reúnem condições para desenvolverem esta típica manifestação e as próprias crianças, se ensinadas na técnica da rima, podem também manifestar aos adultos a sua mundividência.
O exemplo das danças e bailinhos da Ilha Terceira, as danças das castanholas de Rabo de Peixe, as danças de cadarsos e outras, são bons exemplos que continuam a atrair a juventude para esse tipo de manifestações carnavalescas que nada têm a ver com as modernas celebrações urbanas diferentes do carnaval rural.
Talvez por não entenderem esta dualidade celebrativa e a sua importância cultural junto das populações rurais, é que, este ano, não houve tolerância de ponto na terça-feira do Carnaval.
O povo, que tão cansado está de se manter enclausurado, não o esqueceu e o Bando da Piedade também não.
Espera-se que, no próximo ano, regressemos a um novo Carnaval.
E enquanto essa quadra não chega, vem aí a Quaresma e a preparação para a celebração da Páscoa, que nesta ilha do Pico, tem também manifestações peculiares.
http://escritemdia.blogspot.com

*Jornalista c.p.239 A

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