Diário dos Açores

Ucrânia: a tragédia continua

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Quando a guerra começou, a 24 de fevereiro, grande parte dos comentadores dizia que seria breve, tal era a desproporção de forças militares em confronto. O certo é que ela continua e já se diz que está para durar, o que significa que o cortejo de mortes, destruição e sofrimentos de toda a ordem, bem como as imagens que as televisões nos mostram, continuarão a fazer parte do nosso dia a dia. Quando a Guerra de 1914-1918 começou, também se previa que seria breve, mas durou quatro anos; o número de mortes foi enorme e a Europa ficou de rastos. A de 1939-45 durou cinco anos, o número de mortes superou largamente o da Primeira Guerra e o rasto de destruição que deixou foi colossal; houve cidades inteiras praticamente arrasadas. Quantas vezes, ao ver na televisão imagens de cidades ucranianas bombardeadas, me vem à memória filmagens feitas nas cidades alemãs, no fim da Segunda Guerra.
Há dias, conversando com um amigo, ele disse-me que procura manter-se informado sobre a Guerra na Ucrânia, mas tenta poupar-se no que respeita à exposição às imagens mostradas pelas televisões porque, quando vê vários telejornais durante o dia, fica de tal modo perturbado que à noite não consegue dormir. Pela minha parte, procuro evitar ver televisão durante o dia. De manhã, vejo a imprensa escrita e só à noite acompanho os telejornais do prime time. De facto, se não procurarmos um certo controlo da nossa exposição ao que a TV nos mostra da guerra, entre outras coisas arriscamo-nos a perder a noção da sua tragédia por embotamento da nossa sensibilidade.
Ao fim de quase três meses de guerra, uma das razões de preocupação de muitos é a de não se descortinarem sinais de que o conflito caminha para o fim; há cada vez mais notícias sobre o intensificar dos combates, a mobilização de cada vez mais armamento ea extensão do teatro de operações vai aumentando. Para além de tudo isto, não se perfila no horizonte alguém ou alguma instituição que pareça com capacidade de mediar o conflito. Se houvesse racionalidade nas relações internacionais, a ONU seria o espaço em que os contendores poderiam encontrar condições de diálogo porque, como costuma dizer o Prof. Adriano Moreira, ela é o fórum internacional em que todos falam com todos. O problema, como também reconhece o Professor, é que nesse espaço nem todas as vozes têm o mesmo peso; basta pensar no Conselho de Segurança. Há muito que se afirma que a Organização das Nações Unidas precisa de uma profunda reforma, mas não há condições para a levar a cabo. Recordo-mede uma entrevista dada por Freitas do Amaral a uma televisão, pouco depois de terminar o seu mandato como presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, cargo que ocupou em 1995-1996;entre muitas outras coisas, o Professor contou que, ao chegar a Nova Iorque, encetou diligências com vista a uma reforma da Organização, mas rapidamente percebeu que era um esforço votado ao fracasso. A razão da impossibilidade era cristalina: entre outras coisas, havia que reformar o Conselho de Segurança onde as Grandes Potências, seus membros permanentes, têm poder de veto, trunfo que, como é evidente, nenhuma quer perder. É bem-sabido que ninguém quer perder poder; conquistar mais algum, talvez, mas perder, nunca. Conclusão: enquanto a situação no Conselho de Segurança for a atual, a ONU muito dificilmente será um espaço de diálogo capaz de prevenir a guerra ou pôr-lhe termo.
A Carta das Nações Unidas diz claramente que a Organização visa a paz, mas quantas guerras já ocorreram depois da sua assinatura, em 1945? A guerra na Ucrânia é mais um exemplo. Em fevereiro especulava-se sobre a possibilidade da Rússia iniciar uma guerra contra a Ucrânia. A 24 desse mês, as Forças Armadas da Federação Russa, país membro da ONU, em obediência a um decreto do seu presidente, iniciou “uma operação militar especial” e invadiram a Ucrânia, outro membro da ONU; não houve qualquer declaração de guerra. Na conferência de imprensa dada pelo Secretário Geral da ONU e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros russo em Moscovo, em 26 de abril, a palavra “guerra” não foi pronunciada; para sinalizar que se estava em guerra, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, recorreu à linguagem diplomática, fazendo uso de um circunlóquio, e disse que havia tropas russas na Ucrânia e que não havia tropas ucranianas na Rússia. Sergey Lavrov, imperturbável, imediatamente confirmou; para eliminar todas as dúvidas só faltou o ministro russo acrescentar, recorrendo ao poder absoluto da semântica: «como sabe, não estamos a fazer uma “guerra” na Ucrânia, mas uma ’operação militar especial’, coisa completamente diferente». O resultado prático do que está a acontecer, contudo, é exatamente o mesmo: uma guerra de invasão com o seu cortejo de mortes, destruição e sofrimento insuportável. Isto é, há um país invadido que está confrontado com uma guerra que é “guerra”, mas o agressor afirma que está a fazer uma “operação militar especial” decretada pelo seu presidente; os dois países pertencem às Nações Unidas criadas para preservar a paz, mas a Organização não tem espaço para diligências conducentes ao fim do conflito, porque está bloqueada: no seu Conselho de Segurança o país agressor tem poder de veto que usará, caso se tente discutir a “guerra”. Ao seu Secretário Geral resta apenas espaço para providenciar apoio humanitário às vítimas, o que, deve reconhecer-se, já não é pouco. Em suma, vivemos num mundo de sombras: há uma guerra que não é “guerra”, mas em que os mortos, os feridos, os deslocados e os refugiados são de carne e osso como nós, e as suas cidades, infraestruturas e empresas, tão reais como as que vemos no nosso dia a dia, são arrasadas segundo os parâmetros a que nos têm habituado as Forças Armadas da Federação Russa.

José Henrique Silveira de Brito *

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