Terça-feira, 17 de Maio de 2022
A notícia chega, arrasadora: o Norberto Ávila.
«Morreu o nosso Norberto Ávila sem nos dizer nada» escreveu Chrys Chrystelo no e-mail. Bateu uma porta, longe, e fez eco aqui.
Quem parte deixa recordações, ou nódoas.
Um dia, em conversa amena e com o seu sotaque estrangeirado, o Norberto disse:
«Lisboa é uma cidade quente, e há dias que são insuportáveis. Mas consigo manter a casa fresca apesar de não ter ar-condicionado. Pela manhã abro as janelas e antes que o calor aperte fecho-as e corro as cortinas. Faço isso há anos e olha que dá resultado.»
Ia fazer 86 anos em Setembro. A última vez que o vi foi na Graciosa.
Era um homem pequeno mas da altura de uma árvore. Rumorejava como naquelas tardes de Setembro quando a brisa ilumina as figueiras da ilha. Chegava aos lugares com a sua postura silenciosa, a roupa de sempre, os sapatos brilhantes, ainda da intensa luz de Lisboa. Via-se, pelo traje, que eram modestos os seus recurso. A sua dignidade, porém, surpreendia a inflexiva natureza destes tempos – crus, olvidáveis e egoístas.
Os livros que escreveu eram os seus filhos. Podia ser uma amendoeira em flor, ou a cor branca e iluminada de uma palavra, a preposição certa, o verbo, o adjetivo tão perto do mar. Quando falava dos seus livros não era como se atirasse um cartão-de-visita, tipo sou escritor, olhe para mim. Sou importante. O Norberto não era assim.
Fazia-me lembrar a límpida humildade de Emanuel Félix, enormíssimo poeta, e, no entanto, um menino com a sua pureza imaculada. Dá gosto pessoas assim. Entram pelos salões nobres a pedir desculpa com a timidez dos inocentes. Para eles, o mundo não é um palco de ostentações.
Se olhasses o Norberto Ávila nos olhos descobrias uma casa triste, uma ilha a bailar no centro de uma onda, um peixe melancólico num aquário inverossímil.
O Norberto esteve neste mundo sem perder a noção do seu lugar na órbita calma dos seus dias, e sem ofender a ordem das coisas iluminadas.
Um dia triste, este, apesar do sol. Chegou hoje aos tropeções e acabou de chofre na terra, húmida ainda das últimas chuvas.
***
Pela tarde saí de bicicleta e com duas máquinas fotográficas. O pneu de trás tinha um furo e lá tive que remendar a câmara de ar. Já tive mais paciência para este tipo de coisas.
Fui em direção ao rio. Muita gente a fazer jogging. Alguns de bicicleta. Outros num passo de quem observa a exangue dança da luz.
Sob estas árvores encontro um caminho para o mistério. De cada lado do trilho abunda caótica vegetação. Esquilos, sobretudo, cauda no ar, correm numa vertigem, intrépidos, pelos altos ramos.
Desmonto e coloco a bicicleta de modo a não obstruir a passagem. Tiro uma fotografia ao silêncio, quebrado por tiras de luz doirada.
Quando alcanço céu aberto, e do meu lado direito, avisto o aeroporto de Pitt Meadows. Do lado esquerdo, Fraser, o rio. Permanece, quase sempre, adormecido. Alonga-se num sono escuro, letárgico.
No ano passado, no alto fulgor de Julho, encontrei um lago na ilha de Salt Spring. A geografia, tortuosa, sinuosa, é perigosa para quem se desloca em duas rodas. Exige pernas de aço e muita cautela. Os turistas andam sempre apressados para chegar ao aborrecimento. O lago, naquele dia quente, era um oásis de água. Aquele espelho azul, apelativo, chamava por mim. Mergulhei, mesmo com a pele aos gritos, nas suas frígidas águas. Valeu a pena.
O Fraser, no contexto desta paisagem, invoca melancolia. Nem sequer me apetece molhar os pés. Observo as ruínas da luz sobre a imensa desolação da água. Regresso à bicicleta e vou-me embora.
Eduardo Bettencourt Pinto *