Diário dos Açores

Centenário de Pedro da Silveira, XIV

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Arthur Rimbaud

Conjugando exercício ou deleite próprios, como fez Alexandre O’Neill nas páginas de A Capital, ou quiçá motivado pelo monumental projecto de Jorge de Sena Poesia de 26 Séculos (2 vols., 1971-72), Pedro da Silveira traduziu autores de sua preferência, numa empreitada que foi ganhando fôlego e resultaria, décadas depois, no volume Mesa de Amigos (68 no total) cuja primeira versão saiu discretamente nos Açores com a chancela da Secretaria Regional de Educação e Cultura (1986), antes que a Assírio & Alvim acolhesse em 2003 uma colectânea mais alargada, e revista, dando-lhe enfim a notoriedade merecida. Começou com três poemas de amor de Pablo Neruda, na página cultural do Correio dos Açores, em Novembro de 1948 — quando a obra deste chileno «politicamente empenhado», como agora se diz, não tinha ainda divulgação editorial por aqui (Plenos Poderes sairia pela Dom Quixote em 1962, com tradução de Luís Pignatelli, e sete anos mais tarde Fernando Assis Pacheco assinaria uma Antologia Breve), a qual todavia disparou em 1971, quando lhe foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura.
Quem folheie jornais velhos, ou os tenha lido ao dia em tempos que há muito lá vão, sabe bem quanto era relativamente comum poemas portugueses, ou poemas traduzidos, aparecerem na imprensa diária. Mas aqui o tradutor foi mais longe, fazendo anteceder a sua versão de «Voyelles» por uma informada notícia histórica acerca da —equivocada — passagem do jovem poeta francês por Lisboa. Raramente se encontrará artigo mais documentado sobre todos os aspectos que aborda, da recepção de Rimbaud entre os simbolistas lusos, à própria diacronia das traduções do poema vertido para a nossa língua no Brasil e em Portugal, trazendo rapidamente à memória os seus relevantes trabalhos para a biografia possível de Cesário Verde, o poeta que mais — e mais do que António Nobre — influenciou pares vindouros em Portugal. À beira dos 50 anos de idade, Silveira tinha perfeito domínio das suas excepcionais capacidades de investigador e historiador literário, e o que adiante pode ser lido demonstra-o cabalmente.
Esta folha d’O Comércio do Porto de 10 de Fevereiro de 1970 não recebeu a mínima atenção dos rimbaudianos lusos — e poucos não serão eles, justificadamente aliás —, pelo que, cinquenta anos depois, a trazemos de novo a público como fruto de uma investigação que busca identificar e reabilitar a obra crítica do açoriano da Fajã Grande da Ilha das Flores no quadro das comemorações do centenário do seu nascimento, em Setembro de 2022. Com pequenas oscilações, a sua versão de «Vogais» coincide com aquela que Miguel Serras Pereira e João Moita publicariam na Obra Completa de Arthur Rimbaud, lançada em 2018 pela Relógio d’Água, mas confronta-se de modo interessante com aquela de Ângelo Novo (Cartas do Visionário e Mais Nove Poemas, Fora do Texto, 1995) e sobretudo com a de Gaëtan Martins de Oliveira (35 Poemas de Rimbaud, Relógio d’Água, 1991), que adoptaram uma diferente fixação do poema original. Note-se que já em 1970 Pedro reclamava, com um «Mas será tudo?» final, da ausência de uma tradução ampla ou integral da obra de Arthur — a qual só viria 48 anos depois...
Quando saiu Mesa de Amigos, Manuel de Freitas escreveu no Expresso o seguinte: «Numa altura em que talvez se sobrevalorize demasiado ostensivamente o ouro local, há que louvar a humildade com que Pedro da Silveira nos convida a partilhar jóias de outras latitudes» (1 de Fevereiro de 2003). Se há meses uma escandalosa e muito envenenada injúria trouxe à baila o nome do poeta falecido em Abril de 2003, aproveitemos então o nefasto pretexto para redescobri-lo como verdadeiramente foi e não como, aparentemente, algum (preencher a gosto) gostaria que ele fosse...

Vasco Rosa


O «mistério Rimbaud»... também em Portugal

Um dos mais interessantes capítulos do ensaio-inquérito de Jacques Lethève sobre os Impressionistes et Symbolistes devant la presse (col. Kiosque, ed. A. Colin, Paris, 1959) intitula-se «Le mystère Rimbaud». Um título, este, que se poderá traduzir à letra — «O mistério Rimbaud» — mas sem que se suponha ou ponha, no mistério, qualquer tempero puxando a extra-terreno. «Mortel, ange ET démon, autant dire Rimbaud…», mas deixemos a Verlaine o pensá-lo anjo e demónio, se uma coisa ou a outra; e fiquemo-nos pelo mortal, embora um mortal excepcional, que foi Jean-Arthur Rimbaud. Nesta opção ainda temos (ou tivemos) «mistério Rimbaud»: o do poeta cedo revelado e dentro em pouco fugido da literatura, cuja obra se irá impondo a um pequeno grupo de iniciados desde 1883, enquanto em França, salvo a família, ninguém lhe conhecia o destino verdadeiro, sequer se era vivo ou já morto.
Não calculo quando primeiro seria que o nome de Arthur Rimbaud soou ou se imprimiu em Portugal. Ignoro também se cá chegaria o número da revista Lutèce em que, naquele ano 1883, Verlaine publicou os Poètes Maudits, com seis inéditos de Rimbaud, entre os quais o soneto das «Voyelles». Ou se, em sua vez, chegaria a edição em opúsculo do ensaio de Verlaine, no ano seguinte lançada por Léon Vanier. Realmente, chegava cá muita coisa… Sou, contudo, levado a admitir, com boas ou más razões, que o primeiro divulgador entre nós da nomeada de Rimbaud terá sido Xavier de Carvalho, nalguma (ou nalgumas) das crónicas de Paris enviadas para A Província, do Porto, a partir de 1886. Infelizmente, até agora só pude ler-lhe a colaboração neste jornal desde Julho de 1889 até Fevereiro de 1890, quando a cessa. E assim, de seguro saber só sei que na última sua «Crónica de Paris» publicada n’A Província, a 14 de Janeiro de 1890, ele de facto se ocupa do autor das Illuminations. Mas não antecipemos; diga-se só, que, chegado a Paris em Setembro ou Outubro de 1885, então com 24 anos, não tardou a entrar na roda dos decadentistas. Em 1882, n’O Português, de Lisboa, testemunhará de si (e outros o corroborarão) que «nas colunas da Província foi dos primeiros, senão o primeiro, a discutir essa nova corrente poética francesa (o Decadentismo e o Simbolismo sua derivante), e que aqui em Paris tem estreitado relações com muitos dos primeiros vultos dessa jeunesse montante e fundadores da escola (como Mallarmé)» (e Verlaine, Kahn, Moréas, etc.).
Disse 1886; e 1886 é precisamente uma data muito decisiva para o conhecimento da obra de Rimbaud (assim como foi a do manifesto simbolista de Moréas). A partir de Abril, a revista La Vogue, dirigida por Gustave Kahn, divulga-lhe importantes inéditos, desde o longo poema «Les Premières Communions» a «Les Illuminations», e ainda a praticamente desconhecida «Une Saison en Enfer». A fama do poeta cresce, e com ela o «mistério» do seu destino: morto? vivo? se vivo, onde?
A imprensa francesa matou Rimbaud mais do que uma vez antes da terça-feira 10 de Novembro de 1891 em que ele de facto faleceu em Marselha, numa cama de hospital; assim como depois desta data agora e logo o deu por vivo, aqui ou ali. Ele foi, sucessivamente ou ao mesmo tempo, para os seus cronistas e noticiaristas, mercador de porcos no Aisne, rei duma tribo de negros algures em África, ou simplesmente um negreiro, e várias coisas mais…
A 2 de Julho de 1892, os leitores do diário O Repórter, leram naturalmente com curiosidade, isto que trazia a secção dos «Ecos & Notícias» sob a epígrafe Arthur Rimbaud: «Está em Lisboa o aplaudido e vibrante poeta francês, Arthur Rimbaud, que é imediato do brigue La Bécasse, chegado ontem ao Tejo, vindo da Austrália, onde Rimbaud é proprietário e lavrador. — Escreve em francês, e nasceu a bordo de um navio francês, mas é filho de uma portuguesa da ilha da Madeira, e de um alemão. Mais ainda, é casado com uma senhora portuguesa, de Bombaim, D. Luísa Noronha, filha de um antigo governador de Goa, D. Pedro de Noronha, da casa Anjeja. — Arthur Rimbaud é um robusto homem, ainda muito moço. Tem quatro filhos, o mais velho dos quais, Neva Rimbaud, de 13 anos, acompanha o pai constantemente. Madame Rimbaud reside com sua mãe e os três restantes filhos numa herdade-quinta dos arredores de Melbourne, onde a família tem as suas plantações de algodão, e abundantes rebanhos de merinos. — Damos as boas-vindas ao notável poeta.»
Não; não se trata, pelo que toca ao jornalista, de brincadeira de mau gosto. Fosse ou não o imediato do brigue La Bécasse homónimo do autor do «Bateau ivre», o certo, absolutamente certo, é que a embarcação em causa entrou no Tejo no 1.º de Julho de 1892. E também se admitirá, é quase rigorosamente seguro, que a esta data o «aplaudido e vibrante», o «notável poeta» francês (mas não o «robusto homem, ainda muito moço», imediato de La Bécasse) já era lido, senão no Reliquaire, num ou noutro exemplar das Poésies editadas por Léon Vanier (Dezembro de 1891). Não esqueçamos que em fins de Maio, ou antes de meados de Junho, de 1892, foi posto à venda o livrinho de poemas-paródias Nós Todos, com que Eugénio Sanches da Gama [1864-1933] entra no coro das troças ao nosso Simbolismo. Ora esse livrinho assina-o ele com o pseudónimo de Estefânio Rimbó: Estefânio, na ortografia de então Estephaneo, de Stéphane (Mallarmé), e Rimbó, de (Arthur) Rimbaud. Ambos os precursores dos simbolistas franceses já eram, pois, tido também (ou mesmo declarados) entre os mestres dos nossos.
Aqui chegado, naturalmente surgirão as interrogações. Em 1892 o conhecimento da obra de Rimbaud seria razoavelmente vasto em Portugal? Ao ponto de quem redigiu a notícia d’O Repórter ter lido alguma coisa dela?
Para já, é fora de dúvida que o jornalista nunca metera os olhos nas Poésies. O volume traz uma notícia biográfica de Rimbaud, suficiente para o ter livrado de confusões. Mas Eugénio de Castro, Carlos de Mesquita, o decadentista José de Lacerda, admito que Eugénio Sanches da Gama (afinal companheiro iniciado dos simbolistas de Coimbra), os componentes do Cenáculo Nefelibata do Porto (Raul e Júlio Brandão, D. João de Castro, Justino de Montalvão, Igo de Pinho, Celso Hermínio, Alberto de Oliveira), Armando Navarro, António de Oliveira Soares, ainda outros, as conheceriam, ou mesmo possuiriam. Se bem que só a partir de 1893 os nossos críticos ligados ao movimento simbolista, em Coimbra, no Porto, nos Açores, bem menos em Lisboa, comecem a juntar com crescente insistência o nome de Rimbaud aos já bastante discutidos de Baudelaire, Verlaine, Villiers de l’Îsle Adam, Huysmans, Moréas, Kahn e Ghil, e ao de Mallarmé (sem falar de Leopardi, Poe e Ruysbroeck o Admirável, e também Antero, e Manuel Bernardes e Frei Agostinho da Cruz). O que não sucederá é vir alguém afirmar-se publicamente seu discípulo; enquanto em 1891 António de Oliveira Soares declarava, repetindo aparentemente com Moréas, «só reconhecer como Mestre o divino Stéphane Mallarmé» (carta a Cândido de Figueiredo, in O Português, 22 de Março). E se fôssemos a avaliar, a meu ver desacertadamente, mestrados pelo aparecerem traduções, o de Rimbaud bastante tempo esperaria: até quando Rodrigo Solano nos deu, com fidelidade e felicidade, «A minha boémia» (1905) e «O dorminhoco do vale» (1907). (Já agora, marginalmente, diga-se que Solano, activo como poeta desde antes de 1896, não foi insensível à sedução do que traduzia; como também não, assim me parece, o seu amigo António Patrício; e, mais tarde embora, o Metzner que tentou uma espécie de glosa às «Voyelles»)
Está visto! Desviei-me, sem bem dar por isso, do «mistério Rimbaud» versão ou variante portuguesa. Encontrei-o vivo em Lisboa em 1892; agora, nesta mais divagação que outra coisa (para ensaio, não chega), importa que ponha a outra descobertazinha: que também em Portugal o poeta foi… morto antes de morrer.
Já notei que a última «Crónica de Paris» de Xavier de Carvalho n’A Província foi publicada a 14 de Janeiro de 1890. Precisamente nela é que diz o frequentador dos meios decadentistas-simbolistas franceses constar que Rimbaud morrera na Pérsia. Fala aí da sua obra, da fama que já a acompanha. Refere Les Illuminations (pela primeira vez?), dizendo que o livrinho não só se esgotou como se tornou inencontrável. Uma vintena de linhas de gostosa leitura.
E, agora, que mais dizer de Rimbaud, já sem «mistério», em Portugal? Se toda a gente o sabe… Do «Bateau ivre» [1871], publicou-se uma tradução, em 1947 (a de A. Herculano de Carvalho [1899-1986], na Musa dos Quatro Idiomas), e a de Une Saison en Enfer ‘Uma Época no Inferno’, que Mário Cesariny de Vasconcelos terá começado pouco depois (então, mais surrealistamente, Uma Cerveja no Inferno), viria a imprimir-se passados treze anos.
 Mas será tudo?…


VOGAIS

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais
Hei-de um dia cantar vossa origem latente:
A, o negro dum veludo onde o enxame fervente
Das moscas diga a podridão, sombras letais;

E, tendas a alvejar, a névoa lactescente,
Brancos reis sobre a neve e lanceiros irreais;
I, sangue aos borbotões, riso em lábios mortais,
O vermelho da raiva ou duma dor pungente;

U, vibração do mar nos verdes horizontes,
Paz dos pastos sem fim, paz das rugas nas frontes
Dos que sondam da ciência os íntimos refolhos;

O, supremo clarão em que estridulam brados,
E o silêncio em que passa um anjo, Aléns povoados,
— O, o Ómega, essa luz violeta dos seus Olhos!

(Versão de Pedro da Silveira)


Em vez de versão, a estas «Vogais» talvez melhor caberia a classificação de paráfrase ou interpretação. Chamar-lhe tradução, de novo, seria caso de se trazer a terceiro a locução castigadora: Traduttores, traditore.
Não sou o primeiro a verter ou interpretar em língua portuguesa este soneto de Rimbaud, que o escreveu supõe-se, em 1871, dos 16 para os 17 anos, e que pela primeira vez será publicado, por Verlaine, com o ensaio sobre os Poètes Maudits, na revista Lutèce, de Paris, número de 5-13, de Outubro de 1883. Com efeito, já o verteu para português o poeta neo-simbolista brasileiro Onestaldo de Pennafort, e parece que também outro seu compatriota, Celso Vieira. Uma das versões corre em dois livros antológicos: nas Obras-primas da Poesia Universal, selecção e notas de Sérgio Millet (Martins, São Paulo, 3.ª ed. 1963), onde está atribuída a Onestaldo de Pennafort, e na Poesia de França – Antologia de Poetas franceses (Do Século XV ao Século XX), selecção e notas de R. Magalhães Júnior (Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1966), em que passa por ser de Celso Vieira — em ambas com o primeiro verso estropiado. E não quero deixar de dizer que, de Pennafort ou de Vieira (inclino-me a que seja do primeiro, mas que haverá realmente a do outro — e daí a baralhada dos nomes), esta minha lhe deveu sugestões, sobretudo na solução rítmica dos tercetos.


Pedro da Silveira

O Comércio do Porto, 10 de Fevereiro de 1970.

 

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