Diário dos Açores

A Região Autónoma e o Tribunal Constitucional

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A existência de um Tribunal Constitucional (TC), isto é, uma instituição jurídica e judicial e de natureza política que interpreta e delibera sobre a melhor compreensão da Constituição Portuguesa – em si mesma é um acontecimento democrático de relevo extraordinário e com efeitos práticos e de muita qualidade. Subjacente à sua criação está um acontecimento anterior também digno do mesmo relevo: a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis no momento da sua criação. O TC foi criado na revisão constitucional de 1982, mas a fiscalização preventiva já estava prevista no texto originário da Constituição de 1976. De 1976 até 1982 era o Conselho da Revolução (CR), baseado num parecer da Comissão Constitucional (CC), que deliberava se a lei a aprovar estava ou não conforme a Constituição; e a partir de 1983, com a extinção do CR e da CC, e a instituição do TC, tudo mudou para melhor. A par da fiscalização preventiva, que é estritamente político-orgânica, existia também a fiscalização sucessiva (quando a lei já está publicada e em vigor) que era resolvida pelo Supremo Tribunal Administrativo, ou seja, uma parte jurídica, mas também política porque era iniciada pelas entidades políticas (ou seja, fora do contexto da fiscalização concreta feita por todos os tribunais em geral, porque, como é consabido, qualquer pessoa, singular ou coletiva, pode questionar numa ação contenciosa nos tribunais administrativos e civis a constitucionalidade de qualquer norma de lei em vigor). Ou seja, até 1982, a fiscalização da constitucionalidade da lei em criação e da lei já em vigor, era um modelo híbrido. Mas com o novo modelo depois de 1982 também essa fiscalização passou a estar no órgão especializado, o TC. Ficou consagrado, pois, uma parte do sistema político de grande intensidade constitucional, sendo mais um patamar de controlo do que é o melhor para a «promessa» (na palavra de Habermas) da Constituição.
Poucas pessoas, infelizmente, têm plena consciência dos valores que estão em causa neste modelo democrático moderníssimo e elevadíssimo, apesar de imperfeições. E não é pouco frequente as vozes de quererem extinguir o TC e o seu sistema de fiscalização da constitucionalidade – mas fazem-no sem inteira consciência política do que seria um retrocesso democrático. O TC e as suas valências necessitam de aperfeiçoamentos – mas a sua pura expurgação seria uma enorme machadada no modelo da democracia portuguesa. E acontecimentos recentes, como o chumbo de um nome pela Assembleia da República para a composição do TC por causa de opiniões sociais – vão-se amontoando como sujidades políticas à volta da instituição.
E o TC no contexto das regiões autónomas?
A primeira lei processual do TC previa a possibilidade de em cada Região Autónoma existir uma secção do TC, à semelhança do que existe para o Tribunal de Contas. Essa hipótese desapareceu. Sem estarmos agora a defender uma solução desse tipo – porque para isso é necessário fazer-se o estudo das necessidades e custos, sempre se dirá que não era exagerada. O TC foi previsto na Constituição em 1982, foi implementado em 1983 e tem acórdãos desde 1984. Até janeiro de 2022 o TC tem um total mais de vinte mil acórdãos, o que em 39 anos de deliberações representa uma média anual de mais de seiscentos; e destes, também no mesmo período, existem mais de quatrocentos acórdãos sobre as regiões autónomas, que, num traço de média global, representa uma média de cinco por ano por cada Região; se juntarmos outras elementares funções, sobre as questões dos partidos políticos, como contas e acertos estatutários, e ainda matérias de foro eleitoral, de todas as eleições, uma secção do TC em cada Região Autónoma – seria muito trabalho. Mas não é uma boa solução: perderíamos o contato direito entre o saber do TC em geral para afunilarmos ainda mais o conhecimento constitucional e, pois, a seu tempo perderíamos qualidade.
Mas – considerando a composição política do TC e a sua eleição, pensamos que a cultura autonómica e democrática do país justifica como oportuno que dois dos juízos escolhidos parlamentarmente para o TC fossem escolhidos nas assembleias legislativas das regiões autónomas. Embora a composição do TC tenha uma matriz política – porque parte dos seus membros são escolhidos pela Assembleia da República, as suas funções são exclusivamente jurídicas: o TC, na avaliação das leis, seja no âmbito preventivo, seja depois da lei estar em vigor no âmbito sucessivo, apenas faz interpretação jurídica; pois a sua ação está exclusivamente centralizada na norma jurídica. E por isso mesmo os seus juízes têm formação jurídica e sobretudo de âmbito constitucional. A interpretação do TC atende, por um lado, ao sistema de interpretação das leis naquilo que é a base de todas as leis (que constam das específicas regras gerais do Direito português previsto no Código Civil (sistémica, atualista, mínimo literal, etc.) e dos modelos de interpretação constitucional (que são, aliás, criados sob a base daqueloutro). Assim sendo, não existe nenhum impedimento que as assembleias legislativas possam, através do debate e da deliberação, escolher a sua preferência tecnológica e política. Tanto mais, ainda assim, as deliberações do TC são por maioria (não por unanimidade).
Com que fundamento político? O país, com a Constituição de 1976, deixou de ser um Estado unitário – e passou sendo um Estado unitário parcialmente regional. Estamos quase a comemorar meio século de democracia consolidada, e que aliás, no contexto da União Europeia, é um dos países que mais garantias dão de consolidação democrática (apesar de na administração e na justiça termos grande necessidade de modernidade). Tendo em conta que o TC no seu funcionamento muitas vezes é chamado a discutir o sistema autonómico – por forma a encontrar a melhor resposta para que melhor se enquadre a legislação regional no contexto da constitucionalidade das leis; tendo em conta que na leitura da legislação nacional a experiência regional é fundamental como ponto de referência para outros níveis de interpretação – eis, pois, assim em síntese, o fundamento.
O como escolheria a Assembleia Legislativa essa pessoa? Faria como o faz a Assembleia da República. E quem seria esse técnico? Aquele, fosse açoriano ou não, que cumprisse os requisitos políticos de tal nomeação. Que ganharia a Região? Que o seu direito fosse melhor conhecido do país para o servir também, e para melhorar o direito regional. E o que ganhariam os insulares com esta escolha e nomeação? A construção de um pensamento constitucional autonómico com capacidade para garantir e melhorar os seus direitos fundamentais.

Arnaldo Ourique  *

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