Diário dos Açores

Memórias de Macau VII: Recordar Macau 1976-1982

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Os valores do mundo ocidental de nada valiam, como a minha persistente, vã, inútil, cruzada contra a corrupção e nepotismo o viriam a provar. Saí com a cabeça bem alta e a bolsa nada recheada, ao contrário de praticamente todos com quem me cruzara nesses anos.
Havia 32 feriados ao ano, os de Macau (portugueses), os chineses e os ingleses (banca de Hong Kong). Havia dias em que na Central só havia chefes e outros em que só havia “coolies” (trabalhadores indiferenciados, serventes). Era muito difícil chegar a acordo, prometia-se-lhes mais dinheiro, não queriam; mais folgas, recusavam. Finalmente, foi acordada nova lista, sem mais dinheiro ou descanso, apenas um arranjo melhor. O dinheiro e a promessa de descanso que qualquer ocidental aceitaria, não surtira efeito. Foi uma das muitas lições que aprendi.Mais difícil fora criar carreiras profissionais locais, contra a renitência da administração. Os continentais e expatriados de África tinham sido contratados com condições milionárias. Os Chefes de Secção, duma Divisão, ganhavam 300 patacas e o superior hierárquico imediato, Chefe da Divisão 5000 $ MOP. Com nova política de responsabilização, melhor aproveitamento de recursos, acabou por reduzir-se substancialmente o fosso. Nada mau para aumentar a justiça social, ao contrário de Portugal em que tal diferencial nunca para de aumentar. Se em 1977 o diferencial salarial era de 16,6 (5000 vs 300), cinco anos depois era só de 3,6 (11000 contra 3000 MOP). A isto junte-se um CT (contrato coletivo de trabalho que demorou dois anos a aprovar) que foi, salvo erro, o primeiro em Macau. Sempre andei ao contrário do mundo e dos caranguejos.
Curiosamente, outra medida inovadora introduzida por mim, foi o hábito de reunir os quadros dirigentes com os trabalhadores em festas de natal, com música, declamação de textos e cantigas alusivas à época, o que não era habitual, mais habituados às grandes comemorações do Kung Hei Fat Choi, novo ano chinês.
Aprendi imenso com os chineses. Tudo contrariava as noções basilares da filosofia ocidental que trazia dos bancos da escola. As normas sociais, o aceitável ou tolerável eram distintas das de Portugal ou Timor. Lidei com muitos dos 750 funcionários, convivi, partilhei festas. Aprendi o valor incomensurável da palavra tempo, que surge com outro significado e a palavra paciência, a ideia de programar e agir com vista ao futuro longínquo e invisível. Implacáveis, seguem direções milenares, sem hesitações num sentimento de dever e de tradição que nada tem a ver com noções ocidentais. Há um objetivo e essa é a meta que perseguem, como missão sagrada, os obstáculos são apenas percalços a saltar, contornar ou eliminar. Podem nem transmitir a herança genética, mas ela perdura, irreversível, como uma tatuagem.
 Não há nenhuma norma que nos oriente sobre esta atitude filosófica. Sou um construtor nato de egos por medida e estas noções superam-me. Não sabia que as iria usar como paradigma de vida, ao mudar os arquétipos que me tinham regido. Vivera na busca da felicidade, satisfação e riqueza imediatas e não obtivera nenhuma.
A Filosofia chinesa apresenta dois aspetos complementares. Por serem um povo prático, com uma consciência social altamente desenvolvida, os chineses contam com escolas filosóficas voltadas, de uma forma ou outra, para a vida em sociedade, relações humanas, valores morais e governo. É um aspeto do pensamento. Complementando-o, encontra-se o lado místico do caráter; exigindo que o “objetivo mais elevado da Filosofia seja transcender o mundo da sociedade e vida quotidiana e alcançar um plano mais elevado de consciência (in Capra, F., “O Tao da Física”. S. Paulo: Cultrix. 2ª ed. 1975. 274 p,).” Vejamos o exemplo do bambu:
Quando plantado por semente, tem uma maneira peculiar de crescer que se tornou uma lição de sabedoria. A semente demora a apresentar sinais externos. O bambu enraíza-se bem fundo antes de crescer fora da terra. A semente transforma-se num bolbo e surge um rebento, que permanece inalterado sob o solo por um longo período. Só depois de as raízes atingirem dezenas de metros, ao longo de cinco anos, é que começa a projetar-se para fora da superfície. Depois, em pouco tempo, o bambu cresce vertiginosamente e atinge 25 metros! Ao observar o comportamento do bambu, os chineses aprenderam a paciência. Reconhecer o que o presente exige e depois, paulatinamente, confiar - este é o segredo do bambu chinês, simplesmente faz o que tem de ser feito, no momento em que tem de ser feito, e faz tudo com serenidade, segurança e coragem. Não pensa nos resultados nem sofre por antecipação. O bambu, assim como o sábio, tem confiança plena no processo, nos movimentos da Natureza e na perfeição do universo.
Queremos o imediatismo na sociedade ocidental, e ficamos impacientes diante dos morosos resultados. Se a preocupação for para mostrar efeitos imediatos, corremos o risco de sacrificar as bases e alicerces, e, colocar tudo a perder. Isto é filosofia ancestral. Quando o verdadeiro eu e harmonia se concretizam, todas as coisas alcançam o pleno crescimento e desenvolvimento. A “vida do homem moral é uma exemplificação da ordem universal.” Esta verdade absoluta, indestrutível, eterna, infinita, transcendental e inteligente, abarca toda a existência; aperfeiçoa-a sem ser vista; produz efeitos sem movimento; atinge objetivos sem ação. Uma lenda no livro “O Verdadeiro Livro do País da Florescência (Dschuang Dsi / Chuang-Tzu, c. 369 BC - c. 286 BC)”” narra que na “superação do ego” está o passo decisivo na busca da verdade, do misterioso, maravilhoso e reencontro da totalidade).: A lenda:
“O senhor da terra amarela viajou para além dos limites do mundo. Chegou a uma montanha muito alta e viu a circulação do regresso. Então, perdeu a pérola mágica. Mandou o conhecimento buscá-la e não a teve de volta. Mandou a perspicácia buscá-la e não a teve de volta. Enviou o esquecimento de si mesmo e encontrou. O senhor da terra amarela disse: “É estranho que justamente o esquecimento de si mesmo tenha sido capaz de encontrá-la!”
Segundo Lao Tsé (filósofo chinês fundador do taoismo, séc. VII a.C.)” O rio só atinge o objetivo porque aprendeu a contornar os obstáculos”. Pouco sabia de chinês falado (cantonense) embora balbuciasse frases elementares. Os meus funcionários chineses fingiam nada entender de Português além dos cumprimentos de cortesia. Uma das cinco secretárias, chinesa, datilografava 82 palavras por minuto em Português, alegadamente sem entender nada. Esta atitude destinava-se a garantir uma vantagem sobre o interlocutor, sem dar a saber que o entendiam, prática milenar de comprovados excelentes resultados em trocas comerciais. Com a pretensa humildade se destronava a arrogante atitude dos kwai-lo (insultuoso se usado como sei kwai-lo = maldito fantasma branco). Originalmente diabo branco ou meramente estrangeiro, kwai é fantasma, diabo, morto-vivo, habitante dos infernos budistas. Quiçá a explicação de pensarem que os brancos, tão alvos, eram mortos que tinham voltado. Até mês e meio antes de ir para a Austrália, falei português e inglês, mas subitamente comecei a usar cantonense para espanto e interrogação deles. Ficariam sempre na dúvida, sem saberem quanto sabia ou desde quando. Era o que nos faziam, aos ocidentais. Tal como eles, aleguei sempre que nada entendia, não era a minha guerra, estava só de passagem. Deu resultado.
A CTC (Central Termoelétrica de Coloane) estivera dois anos nas mãos dos japoneses antes de entregarem a chave das operações. Um dia, entra um Administrador japonês no gabinete, sorridente, com um envelope com um cheque. Qual o espanto dele quando o abro e digo que não, que devia ser engano, não podia ser. O nipónico pensou que ficara ofendido pela quantia e recuou às vénias. Declinei, sem saber que era 10% de “luvas” (hábito). Anualmente assinava o equivalente a vinte milhões (€ valores de hoje), em sobressalentes para a Central e que seriam fornecidas por eles, japoneses da Mitsubishi. Estúpido não me chamou, o meu chefe que conseguiu transferir um milhão para a Suíça, certamente acumulando o cheque que eu recusara. A minha mãe deve ter-me chamado nomes quando se falou neste episódio. Mas não me arrependo. A terminação dava jeito hoje, difícil como está a vida dum reformado precoce.

 

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713
(Australian Journalists´ Association MEAA)

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