Diário dos Açores

O passe das Poças

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A cada dia de cavalhadas hei-de recordar o passe das Poças que me foi prometido, e ainda nem sombras dele vi, e nunca verei.
A verdade é que eu não sou assim, tão pobre, nem estou à espera de um passe gratuito para utilizar a estância balnear da Ribeira Grande. Porém, debaixo de brincadeira a coisa cairia em graça e haveria de se tornar engraçada. Porque a própria ideia do passe, da brincadeira veio.
Em 2017 fiz uma viagem relâmpago a São Miguel, com o propósito de participar nos festejos da cidade que celebrava o seu trigésimo sexto aniversário.
Tendo chegado à Ribeira Grande por volta das oito, depois de aborrecer um pouco a família enfiei-me nas Poças às dez. Entre sol e água salgada recordei Ti Mariano - o tal guardião daquele espaço nas décadas de setenta e oitenta.
Ali mesmo, deitado ao sol, pus-me a escrever uma crónica sobre a pessoa e o lugar, enviando-a de seguida aos três jornais diários de São Miguel, que a publicaram no dia seguinte, 28 de Junho.
A véspera de São Pedro foi outro dia de mar e sol que ocupou todo o meu tempo entre Trindades e Avé-Marias.
Chegando a casa de minha irmã, ao anoitecer, ouço-a, sem querer, falando com a filha ao telefone, dizendo-a que ninguém via o tio em lado nenhum, porque ele se metia nas Poças de manhã, e de lá só saía à noite.
O vinte e nove de Junho foi diferente, porque tendo sido convidado a assistir à chegada das cavalhadas nos Paços do Concelho, não me deveria atrasar. Mas o espaço de tempo vazio entre  os cavaleiros e a sessão solene do aniversário da cidade dava direito a mais dois ou três mergulhos na água salgada. Por isso, guardei na algibeira o bilhete de entrada das Poças, que usara pela manhã.
Enquanto não chegava a alvorada, no palácio do governo municipal eram notórios os mais variados cumprimentos, e pés-de-conversa a torto e a direito, tais como os modos de cortesia invulgares que só se vê nas festas e galas, e em situações de dar nas vistas. No meio de tudo isso também aparecem momentos para graças, piadas e gracinhas, as quais  geram os bonitos sorrisos para serem duplicados nas fotografias de propaganda.
Estávamos nisto. A certa altura, à beira da varanda, uma conversa fiada com José António Garcia e Alexandre Gaudêncio, presidentes municipais, respetivamente da Assembleia e da Câmara.
Por um momento tive a necessidade de levar uma das mãos  à algibeira, a tirar de lá qualquer coisa, que acabou trazendo consigo o bendito bilhete das Poças, que foi logo reconhecido pelo José António, o qual não perdeu a  oportunidade de decifrar o pensamento:
“O Alfredo está à espera que isto acabe, para se ir enfiar nas Poças, outra vez. Ele até guardou o bilhete desta manhã… Ele não veio da América para a Ribeira Grande. Veio, sim, para as Poças. Só passa pela Ribeira Grande nas horas vagas...”
Se o bilhete é válido por todo o dia porque havemos de pagar duas vezes?
A esta pergunta respondeu Gaudêncio com aquele sorriso que lhe é único, virando-se para José António:
“A gente vai arranjar-lhe um passe para as Poças. Gratuito. Assim, ele há-de vir da América mais vezes.”
E os dois acrescentaram:
“Mas não é para ficar nas Poças de sol a sol. É para ir e voltar quantas vezes forem necessárias.”
A verdade é que me sentiria muito honrado com o passe das Poças, e isto eu lhes disse na mesma altura. Aceitaria como se tratasse de uma medalha de mérito.
E como na brincadeira muitas vezes se fala a sério, fiquei mais ou menos convencido que uma surpresa me espreitava a curto prazo, o que nunca veio a acontecer.
Passados uns meses, sempre debaixo da brincadeira, perguntei ao presidente da Câmara pelo passe. Ele retorquiu-me que aquilo era um assunto da competência da Assembleia Municipal.
Fiz a mesma pergunta ao presidente da Assembleia, e a resposta indicou que só a Câmara o poderia conceder.
Pelo menos, tiveram a consciência de não me enviar para a Junta de Freguesia, ou para a Casa do Povo, ou até mesmo para a Santa Casa da Misericórdia. Bom sinal. Deus nos livre de torturas diplomáticas. Viva o esquecimento!
A banhoca matutina nas Poças é incomparável com as outras dos variados pontos da ilha. O mesmo se pode dizer da vespertina. São diferentes e distintas em formas e aspetos.
O sol, que nasce para a ilha na força do verão por volta das seis, na Ribeira Grande só começa a raiar praticamente às oito horas, depois de completar a dolorosa escalada do Monte Escuro e iluminar o Pico das Freiras.
Por sua vez, à volta das nove da noite dá-se o pôr-do-sol. Um pouco ao largo da Ponta dos Mosteiros, ou da Ferraria, e pode ser apreciado em toda a enseada ribeiragrandense. Espetáculo sublime de alto nível.
Depois de duas canecas de cerveja no Alabote, ou no Tuká-Tulá, ou até mesmo no bar das Poças, aplaudindo a despedida do Sol qualquer poeta pode dar à luz uma bonita estrofe.
Mas se a cerveja pode esperar, porque em Julho dez da noite ainda é cedo, aproveita-se o mar enquanto se puder distinguir as pedras da areia. Porque a água do mar, com o seu salgadinho paladar, sempre gostosa, e de tempero tão apreciado pelos ribeiragrandenses, prepara o corpo para o pesado bafo da noite, nas banhocas do pôr-do-sol.

Deita-te corpo, e descansa
Já fizeste o teu trabalho.
As ondas de maré mansa
São cartas do meu baralho.

Lá vem a onda doirada.
Não haja quem a confronte.
Traz beijos da minha amada
Mais o sol do horizonte.

Por sua vez, diziam os médicos que o banho do nascer do sol era o mais saudável, ao passo que o vulgo antigo afirmava que o batismo da aurora era o melhor remédio para se manter o corpo fresco todo o dia.
Disso não temos dúvidas, e a memória transporta-nos aos finais da década de sessenta do século vinte.
Às seis da manhã já havia gente nas Poças, tomando banho no mar. Mães com filhos e filhas. Rapazes de calção curto e mulheres de saias compridas.
Na década seguinte, a piscina que funcionou por pouco tempo ao lado do Castelo nos seus curtos tempos de vida fez concorrência às Poças. Aquele retângulo de água azulada na primeira claridade do dia convidava ao salto da cerca (só abria às nove). Por isso saltámos-la várias vezes, antes das sete da manhã nos dias úteis.
O banho não era tão bom como o das Poças. Valia, neste caso, o salto da cerca, que durou até terem construído uma outra. Mais alta. Além disso, também foi alterado o horário do funcionário responsável pela manutenção da piscina. Passando este a ir trabalhar mais cedo, terminaram os saltos da cerca.
Por hoje é tudo. Com o passe ou sem ele, irei às Poças. Se passe não tiver quando lá chegar, comprarei o bilhete de entrada. Alguém me abrirá a porta e há-de dizer: “Passe, se faz favor”.

Ondas são toques que brinco,
Trindades toques de bronze.
Mais vale um banho das cinco
Do que uma missa das onze.

Quem me dera ser um peixe
Para nadar no teu mar.
Oxalá que Deus me deixe
Às minhas Poças voltar.

São Pedro, do horizonte
Guarda bem as tuas moças
E deixa Alfredo da Ponte
Ir tomar banho às Poças.


Fall River, Massachusetts, 7 de Julho de 2022

Alfredo da Ponte  *

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