Diário dos Açores

Regionalização dos constrangimentos

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Portugal, segundo o artigo 6 da Constituição da República Portuguesa, constitui um Estado “unitário” e “descentralizado”. Esta última classificação é alvo de muita contestação, mesmo no mundo da academia. À exceção das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, as supostas “regiões administrativas” de Portugal não dotam de poder político, esta competência de descentralização enquadra-se somente nas autarquias locais e mesmo assim com autonomia limitada. Se formos classificar estas regiões como “administrativas” na sua íntegra, então podíamos resumir a sua classificação como regiões financeiramente administrativas, visto que autonomia financeira é o campo de descentralização que as autarquias possuem maior influência. Discutivelmente, Portugal é, na sua essência, unitário e centralizado, com uma maior fluência de desconcentração de poderes do que propriamente devolução.
Aparentemente, o primeiro-ministro António Costa quer avançar com uma nova proposta de referendo para a regionalização indicado para 2024, algo que ele defende desde a sua eleição para o executivo em 2015. Não obstante a chamada “bolha político-mediática” que Costa está deveras preocupado emergido da polémica sobre a construção do novo aeroporto, o primeiro-ministro pretende avançar com o projeto mesmo com o desagrado do presidente da república, Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente formalmente não se opõe ao referendo, apenas dizendo que “[…] já disse o que tinha a dizer” sobre a questão da regionalização em Abril de 2022. Dado o histórico de contestação de Marcelo ao referendo que foi apresentado em 1998, também por um primeiro-ministro do PS, António Guterres, é seguro dizer que o presidente não vai deixar passar este referendo tão facilmente. Com a imediata reação negativa da principal oposição, o PSD, sob a nova liderança de Luís Montenegro, podemos estar perante um deja vu que lembra o cenário de 1998.
O principal objetivo desta nova reforma territorial passará por desenvolver as competências de tomada de decisão das cinco CCDRs (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional). António Costa pretende desconcentrar certas competências que cabem ao governo nacional às CCDRs nas áreas de educação, cultura, ordenamento de território, conservação da natureza e florestas, formação profissional e turismo. Palavra-chave: desconcentrar. Descentralização consta de três elementos de partilha de competências político-administrativas: desconcentração, delegação e devolução. Respetivamente do menos politicamente descentralizado para o mais descentralizado. O problema de grande parte dos membros do governo, e da política no geral, é aausência de ideias sobreo que querem dizer por “descentralizar”. Falam em desconcentração, o que acaba por ser um elemento de descentralização, mas se efetivamente pretendem alcançar uma regionalização por completo, deverão implementar medidas que constam dos três elementos de descentralização. Caso contrário, falar em “descentralizar” somente como “desconcentrar” pode levar a inferências baralhadas na verdadeira essência do primeiro conceito.
Outro aspeto que o primeiro-ministro defendeu sobre este referendo seria de revisar o sistema das NUTS (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) para efeitos de distribuição dos fundos comunitários. Costa pretende criar duas novas regiões de NUTS II: a Península de Setúbal, que integra os concelhos a sul do Tejo; e do Oeste e Vale do Tejo, que inclui as regiões das NUTS III do Oeste, Médio Tejo, e da Lezíria do Tejo. Num breve contexto histórico, em 2002 houve uma repartição de regiões pertencentes à NUTS II de Lisboa e Vale do Tejo para outras regiões da NUTS II para resolver os problemas de distribuição desproporcional dos fundos comunitários. As CCDRs controlam a gestão dos fundos através de programas operacionais. No entanto, a CCDR de Lisboa e Vale do Tejo continuou (e continua) a cobrir as mesmas regiões que foram repartidas. Se Costa pretende criar essas duas regiões para integrar a NUTS II para efeitos de distribuição dos fundos, a CCDR de Lisboa e Vale do Tejo iria continuar a cobrir estas regiões e manter a gestão dos seus fundos comunitários? Ou criar-se-ia novas CCDRs para a criação de programas operacionais destinados às duas novas regiões?
É preciso ponderar em dois possíveis constrangimentos sobre este referendo com base nas predisposições presentes na Constituição. Em primeiro lugar, “o referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento” (art. 115, nº 11). Isto quer dizer que se metade dos inscritos no recenseamento eleitoral abster-se, o referendo não terá efeito. O referendo para a regionalização de 1998 contou com 51,71% de abstenção, portanto mesmo se o “Sim” vencesse, o referendo não seria vinculativo. É necessário o primeiro-ministro disponibilizar argumentos que manifeste-se em motivação popular para o voto no referendo. Escusado será de apresentar a proposta de votar no referendo que coincide com uma data de eleições nacionais (e europeias), visto que é proibido na Constituição (art. 115, nº 7).
Em segundo lugar, “são excluídas do âmbito do referendo as alterações à Constituição” (art. 115, nº 4, alínea a), o que quer dizer que a categorização do sistema territorial português como “unitário” seria desafiado por uma maior regionalização. Sabendo que Marcelo Rebelo de Sousa não é exatamente o melhor apoiante de qualquer ideia que desafie, no seu ponto de vista, “a integridade territorial do Estado português”, mais provável será ele demonstrar o seu desconforto perante a apresentação desta proposta. Aqui a possibilidade de coabitação pode-se tornar realidade.


*Investigador doutoral em Ciência Política na Universidade de Aveiro

Diogo Vieira Ferreira*

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