Esta minha varanda açoriana
Eis-me de volta a casa, à minha casa açoriana. E que bem entendo Alfred Lewis quando diz: Homeisan Island.
Mesmo quando se vem encontrar a casa toda listrada dos bolores da humidade (nem a Guernica de Picasso escapou), triste e escura, e o carro sem bateria e sem ter ido ainda à inspecção.
Mas depressa me recomponho. Tenho a Sandra que em quatro horas, me devolveu a serenidade limpa desta casa-ilha e a promessa do arranjo rápido do carro.
E começo por visitar a Memória, tão vizinha e tão guardadora de memórias antigas. Lá do alto, depressa me familiarizo com as igrejas e as ermidas, o casario da Cidade Património, a chuva miudinha, os socalcos deitados, as vacas a remoer lazeira e o encanto-surpresa das hortênsias, que este ano parece que acabaram de nascer, tão viçosas as vejo.
Acabo por me instalar na minha varanda vis à vis com a amplitude azul do mar. Lá está, como sempre, o ilhéu das cabras. Temos tanto a dizer um ao outro. Há muito que ele anda a convidar-me e a desafiar-me com insistência. E porque não visitar-te? Qualquer dia meto-me num barco e aí vou eu esquadrinhar-te bem de perto, assim como ao fundo do mar que te rodeia.
É tão bom pairar neste entorpecimento de lazeirailhé. Tão bom imaginar-me nuvem no céu dos Açores. Fica-se com vontade de puxar uma delas cá para baixo. Pedir-lhe que nos leve, nos arraste lá pelas alturas em passeio de inspecção ao mundo todo.
Desafiam-nos, provocam-nos, elas também, sempre a mudar de forma:
__E agora, o que sou eu? Um pássaro gigante? Um animal pré-histórico? Uma bailarina? Olha bem. Tens mesmo a certeza?? Não vês parecenças com ninguém teu conhecido?
Entretêm-se a pairar leves e desafiadoras, tão prometedoras de coisas boas, mas intocáveis.
Põem-se a vigiar-nos lá de cima porque sabem que estas nove ilhas albergam segredos a que só elas são capazes de dar sentido. Por vezes até os partilham com certas ilhas. Mas apenas com as que elas acham merecedoras. Por exemplo: há muito que se sabe da cumplicidade delas com o vento que paira por cima da ilha de S. Jorge. De outro modo como seriam os jorgenses capazes de produzir a maravilha dos queijos que produzem? Nuvens e vento são portadores de segredos que derramam sobre a ilha de S. Jorge, oferecendo-lhe ascondições adequadas para a confecção de queijo e manteiga.
Mas são tão volúveis, cansam-se tão depressa da forma como se apresentam aos nossos olhos, estas nuvens.Haja paciência, minhas caras. E canso-me também eu delas para me deixar aliciar por outros convites. Outras manifestações exuberantes
É uma ilha cheia de convites, esta Terceira toda aberta em festa.É verdade que às vezes o céu tem acordado cinzento e os ares arrepiados. Mas não há nada que perturbe a festa do verão. Açoriano que se preze esquece eventuais birras do tempo, esquece maleitas, esquece tristezas e veste esta alma nova e colorida a que dão vida os foguetes, a música, o teatro, os eventos culturais e as Noites brancas.
Ah, e esquecia-me das touradas! Podia eu lá esquecer-me delas.
Voltaram aqueles tempos em que se ouve as pessoas perguntarem umas às outras em jeito de cumprimento: Então, vamos à tourada?, sendo que a resposta vem, sempre acompanhada por um muito terceirense brilhozinho de olhos: ‘Bora, vamos lá!
Mas gosto de voltar à minha varanda. Gosto de alternar o bulício da festa com o bom do silêncio onde só o badalar dos sinos das igrejas tem voz.
É um badalar que nos traz a dimensão da eternidade. E da melancolia de verão.Por isso se sente as asas dela a sobrevoarem-nos, uma melancolia a condizer com o rosado das nuvens e a despertar em nós uma vontade de espraiação pelos espaços verdes que nos rodeiam ou o acompanhamento do destino-mistério dos pássaros lá em cima.
É em momentos destes que sinto instalar-se em mim um poder de deambulação criativa, um desassossego que faz de mim uma pessoa feliz (talvez se possa chamar-lhe uma espécie de droga artificial).
Ah, se pudesse dormir numa rede aqui na varanda!
Se esta varanda não existisse, não tinha sentido a minha vinda aos Açores.
Maria Luísa Soares *