Diário dos Açores

Milagre das lágrimas...

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Memorandum

1 - estorias acontecidas na aldeia micaelense de S. Roque

.../...  O mesmo já lhe acontecera seis vezes na vida de casada: Filomena tinha sempre os seus filhinhos no começo de Dezembro. Depois das cavações, em finais de Março de cada ano, ela ficava quase sempre à espera de novo rebento. Quando se chegava ao tempo das vindimas, o seu corpo já ia redondo, com o futuro rebento a querer descascar, e ela sem agilidade bastante para apanhar os cachos mais escondidos pela frondosidade da videira.
Em tempos já idos, Evaristo e Filomena viviam numa casinha cheia de filhos e de nada. Ambos eram filiados no credo popular herdado dos nossos avós: “nosso senhor dá pobreza mas também dá limpeza”. Assim girava a roda da vida rural: o Evaristo era conhecido pela alcunha de “ti Favela”; nunca recolhia à cama sem primeiro rezar, depois de lavar os pés na velha selha, na água que sobrava da lavação dos queridos filhinhos...
E assim iam (sobre)vivendo “na paz do Senhor”.
Mas... desde há tempos que “ti Favela” andava com a cabeça em caldo. Sim, desde aquele dia invernoso em que o tempo andava encardido pela habitual humidade marítima, o Evaristo não mais deixara de sonhar acordado: a promessa que fizera ao Divino de assumir, pela primeira vez, o “cargo” de mordomo-novo do império da Madalena permanecia dia e noite a latejar-lhe no peito. Ora, acontece que o conhecido “ti Favela” era um camponês com genica, daqueles que não interropem a cavação à primeira rosquilha de chuva ou recolhem a casa perante o relampaguear sem aviso prévio.  
Sempre em frente! Mas... primeiro tinha que falar com mestre Hermínio para caiar de fresco a frontaria da casita onde morava.
 Falta dizer que mestre Hermínio era um dos mais acreditados e estimados caiadores da freguesia. A sua figura atarracada contrastava com a elasticidade requerida para caminhar sobre o madeiramento vacilante que lhe servia de andaime improvisado. No ritual de misturar cores (ou na faina de baldear leite de cal), mestre Hermínio jamais consentira o descuido dum pinguicho de cal nos olhos.  
  Ora, acontece que mestre Hermínio era dos poucos que sabia do segredo da promessa que ti Favela trazia escondida na mais secreta “gaveta” do seu coração: a promessa de “pegar no cargo” de mordomo do império da Madalena (promessa feita num momento de aflição, quando uma das suas filhinhas estivera “às beiras” da morte, com uma crise medonha de sarampo)…
 Durante os dias infindáveis das “cavações”, as noites eram curtas para sonhar com as suas “petchênas” vestidinhas a primor no desfile da coração: imaginar a cerimónia na igreja paroquial, perante o habitual olhar distante do sô padre; prever a irmandade do largo da Madalena com os olhos postos no corte do modesto fato de casamento... enfim, face a tudo isto, Evaristo mal podia imaginar que, sob o recatado contentamento da mulher, havia um sentimento de temor que só quem ama em silêncio é capaz de decifrar.

    – Filomena! É Mulher – que tás pr’aí a agoirar?
    – Agoirar? Não t’esqueças, Evaristo: os pobres não escolhem gente pobre p’ra mordomo...
          
 Ora, falta ainda recordar que mestre Hermínio sentia semelhante receio. No ambiente rural da freguesia, o ti Favela era geralmente visto de sacho às costas a caminho do trabalho. Não era frequentador das tabernas – a não ser ao sábado para se encontrar com o vinhateiro que lhe pagava a féria da semana. Nos meses de inverno, quando o mau tempo não permitia o trabalho nas terras, Evaristo ia até à doca para experimentar a sorte na descarga de navios. Como não tinha “compadres de copo” acabava quase sempre por regressar de mãos vazias. Mas... quem pode lá travar o passo emocional a quem anda com as algibeiras vazias, mas traz o coração a arder de fé no Espirito Santo?
Para complicar as coisas, naquele ano, o império do Largo da Madalena fora outra vez gerido por um dos caciques locais: criatura astuta que já ia no seu terceiro mandato de mordomo; indivíduo dotado com voz de regedor, que só bebia o seu copito às escondidas; enfim, astuto negociante de gado, e ‘informador’ da confiança dos bancos da praça.  
Ora, chegou finalmente o dia grande da festa: havia razões de sobra para que o largo da Madalena estivesse engalanado. Era divertido observar a rapaziada de olhar matreiro, na ânsia de adivinhar o que as raparigas traziam debaixo daquelas vistosas roupagens. Durante a tarde domingueira, o desfile da coroação despertou muita alegria rural; a noite veio chegando perfumada pela massa-sovada e animada pela ‘boa-pinga’ de vinhaça. Já perto da meia-noite, a comunidade local começa a aglomerar-se junto ao império. Dentro em breve iria acontecer algo que seria impensável ver no ritual eleitoral das instituições políticas da época: a eleição do mordomo-novo, via “democracia directa”.
E assim foi. Em conformidade com a tradição consuetudinária, cada candidato era apresentado à irmandade aglomerada à volta do império: o considerado favorito era alienadamente aplaudido; o chamado candidato “atrevido” era simplesmente vaiado, humilhado, desprezado...
 Evaristo respira fundo. Oferece um olhar de esperança à mulher, sorrindo nervosamente à filharada que o rodeia. Depois sobe os degraus estreitos rumo ao império – espécie de palaquim onde a coroa do Divino aparece rodeada pelos vasos floridos preparados pela irmandade em trânsito...
Mas eis que acontece algo que Evaristo não pode acreditar. A barulheira é duma tal (des)ordem que nem sequer lhe dá tempo para mostrar aos irmãos-eleitores a silhueta do seu rosto honrado, embora curtido pela brisa miseranda do ignorado ruralismo campestre.

 – É p’ró chã! É p’ró chã! Já viram..? Aquele tamã queria encher a pança à custa da coroa...
  – É hóme ... vá p’ró chã!...

O camponês Evaristo ‘Favela’ finge não ouvir o berreiro exaltado de gente da sua gente. Começa a falar sozinho: – Ó céus! Somos todos parentes da pobreza, primos-irmãos da ‘família-do-não-ter”...  Afinal, quem somos nós...?
O seu olhar desce até aos filhinhos que, sem nada entenderem da algazarra, procuram esconder-se na roda da saia lavada de fresco que a mãe Filomena trouxera para condizer com a dignidade da promessa do marido.

.../...  Ainda o eco esganiçado da populaça “é p’ró chão! é p’ró chão!” não cessara de ribombar os seus acordes, e já Evaristo regressava a casa, cabisbaixo, ladeado pela mulher e pelos filhinhos. A escuridade do caminho não deixava ver as lágrimas que rolavam silenciosas pelo rosto do casal. Mas eis que através do olhar lacrimoso, ambos começam a vislumbrar uma claridade suave, mas misteriosa, que se derramava pelas frinchas da janela da sua morada que, por descuido, ficara mal fechada.
Seria o milagre das lágrimas...?
Porém, ao abrir a velha cancela da entrada, Evaristo e Filomena não podiam acreditar na fidelidade dos próprios olhos: no centro da velha cómoda de pinho, uma imponente coroa do Divino estava ladeada por dois maciços castiçais de prata, ambos com elegantes velas acesas que ofereciam a claridade emocional do momento...

(*)    o autor não aderiu ao recente “acordo ortográfico”.
(**)  os nomes e lugares são apenas ferramentas fictícias para ilustrar a estória  (verdadeira) da mentalidade rural. 

João Luís de Medeiros*

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