Diário dos Açores

Do indefinido nevoeiro da memória

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Quando o conhecido criminologista e político, Moita Flores, exerceu funções em Ponta Delgada, deixou-nos um excelente escrito sobre a trajetória suicida de Antero. Assim surgiu uma nova e científica descrição acerca da sua morte  intitulada justificadamente “As mortes de Antero- “autópsia de um suicídio”.
Até então qualquer estudioso de Antero buscava em Tavares Carreiro as pistas para pesquisar. Com esta obra surgiram reservas e levam à releitura do seu enorme espólio documental.  
  Os amigos deram uma visão das contínuas alterações que hoje se diria uma perturbação “bipolar” e antes designada por “psicose maníaco depressiva”. Em In Memoriamos seus admiradores reuniram-se e traçaram um perfil que muitos estudantes do seu tempo de Coimbra não assinariam. Antero, de acordo com estudantes seus contemporâneos, não foi o “Príncipe da Mocidade”  e, nem Um génio que era um santo de Eça, pois não teve tal renome.
Para a maioria dos jovens,Coimbra surgia como um tempo de liberdade e forte rebeldia. Antero esteve mais do lado dos estudantes dos quais se dizia, “ faziam tudo menos estudar”. As divergências com os caloiros mostram-no zaragateiro pois os zurzia à paulada e chegou mesmo a ser preso.
O labiríntico itinerário da sua vida culminou tragicamente. O psicólogo Erik Erikson definiria o estádio da sua juventude como uma longa moratória psicossocial que se revelou sem rumo. À fogosidade com que defendia uma causa seguia-se um afastamento do projeto que logo abandonava. Ao voltar a Coimbra, quando já terminara o curso, e todos os amigos ou colegas se tinham dispersado, demonstra um prolongamento de uma situação sem sentido.
     A experiência de tipógrafo em Paris, “para lutar ao lado dos seus irmãos proletários”, quase à beira do movimento da Comuna, foi um dos muitos insucessos.Com a saúde muito abaladarefugiou-se em casa do amigo Alberto Sampaio, no Minho, a quem deu conta da desilusão que Paris lhe causara. Afinal, o “lodaçal” em que vivam os ricos burgueses e os miseráveis operários gerava uma luta paralela pela sobrevivência sem sombras de um sentimento de união ou qualquer ideal.
A estada em Vila do Conde, vivendo tranquilamente, não seria possível e a sua generosidade pelas órfãs, filhas do amigo e jornalista Meireles trouxe-lhe encargos dos quais não pesou as consequências futuras. Em 1891 via-se dividido entre permanecer na ilha ou partir para Lisboa.
 A amizade de Oliveira Martins, não trazia, para além disso, uma conivência que lhe desse estabilidade. D. Vitória, esposa deste amigo,com todo o bom senso dizia: O que curaria Antero seria sentar nos seus joelhos uns filhos pequenos que lhe dessem alegrias familiares. Sem mencionar, a doença do fim do século, o tédio, vemos como foi bem visível o constante adiar dos projetos, num tumulto de realizações grandiosas de que seria capaz mas a que depois renunciava.

 

 

 

 

 

 

 

 

Um problema que não se refere mas que existe, no âmago da sua personalidade, foi o de nunca ter exercido qualquer profissão ao contrário da norma corrente. Tal facto pesou na sua vida pois o afetouna realização de obras poéticas e filosóficas que destruiu ou deixou inacabadas, uma vez que evitava concluir os seus sonhos que lhe pareciam sempre incompletos. Permanentemente inquieto, Antero viveu no ambiente do positivismo que rejeitava e num cientismo de que estava bem ciente. As suas imensas leituras abarcaram tanto as ciências como a metafísica, a política, afilosofia das ciências, a par das novas descobertas e da obra de Alexander Von Humboldtque chegou a conhecer.
De tanto que estudara queria retirar uma noção e reunir em síntese tanto que investigara. Em 1889 publicava numa revista “Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX.” Tal obra não podia ser uma síntese. Porém é de louvar um tal intento, único no Portugal do seu tempo.
Se para conhecer o poeta teremos de ler atentamente “Odes Modernas” e não apenas os Sonetos, esta sua obra final, “Tendências…” é a de descobertas cientificas que vinham dar razão à filosofia. Em Guitton podemos ler ecos surpreendentes do que Antero vislumbrara e desejara concluir:
Antes de morrer quer ao menos saber para que veio ao mundo.
 Encontra, por fim, um pensamento novo. Apaga as fronteiras entre o espírito e a matéria. “Por isso decidimos dar-lhe este nome: meta-realismo. Este novo espaço do saber, em cujo seio se organiza pouco a pouco um pensamento revolucionário, de tipo “ meta realista”.
Efectivamente, surgia uma outra realidade rompendo com toda a ordem anterior e introduzindo um limite ao que podia ser cognoscível.“Só que, ainda mais nos surpreendemos, aodescobrir que no mais profundo desse seio caótico reina uma ordem que atinge ínfimos pormenores e que a razão é capaz de descobrir.”
   É curioso verificar como o texto anteriano captou essa possibilidade do pensamento do futuro, mas descrita de forma metafísica. O cientista para Antero é o filósofo e este deverá dar lugar ao justo e ao santo.É ele que realiza o Bem.
O cientista Pagels,na sua obra, “Simetria Perfeita”, insiste na necessidade dos cientistas se darem ao trabalho de reflectir e, ultrapassando o seu enciclopedismo “além do saber, entender o Cosmos” e o sentido da existência humana. Antero insistia nessa crítica pois tudo está entre o “saber e o entender”.
     Revisitando o pensamento anteriano encontramos em “Tendências…” não só uma lúcida análise da sua época, mas o anúncio de uma revolução científica e de um novo humanismo. Antero realizava assim a última tentativa de síntese de um sistema em Portugal.
     A sua morte não se tratou de um impulso, ao contrário das especulações e muito se deve ao estado pois hoje sabemos que sofria de uma estenose do piloro.
Tomando uma única refeição por dia, com abundância de alimentos em vez de várias doses ligeiras ,atenuaria certamente as dificuldades digestivas causadoras do tremendo mal-estar fisiológico, cansaço e insónias constantes.
Assim Moita Flores relata a morte biológica,com apenas um só tiro e depois refere o manto tradicional benevolente de uma morte, serena e caridosamente cristã, rodeado de amigos que Tavares Carreiro fantasiou. Na verdade, estudos aprofundados demonstraram desgraçadamente que Antero morreu numa lenta agonia após ter falhado o único tiro, ao contrário das duas tentativas, segundo Tavares Carreiro, e afogado no próprio sangue em tais convulsões que nem dois homens seguravam.
“Não vamos alimentar este caudal especulativo e nemsomos alquimistas das revelações enigmáticas.” Não é possível fazer a resenha exaustiva da série de explicações apresentadas durante mais de cem anos.“Desde a loucura à religiosidade mística, á doença encontramos um leque de opiniõescontroversasalgumas despropositadas que produziram parte significativa de discussões.”  É tarefa do historiador centrar a questão num contexto globalizante, subordinado às relações interdisciplinares, para descortinar o eixo em torno do qual, se perspectiva a história dos acontecimentos que rodearam a sua morte.
Resta-nos apenas salientar que pode não estar concluída a biografia de Antero. Existe, ao certo, em Veneza, na Biblioteca de São Marcos, um espólio de cartas suas, que entregou ao seu amigo, o cônsul Joaquim de Araújo. Com toda a facilidade da informática, soubemos que tal conjunto existe, mas não o podemosconsultar. A Professora Conceição Vilhena trouxe desse espólio as missivas de Alice Moderno. As suas cartas aguardam que alguém as consulte pois desejou que só pudessem ser lidas 50 anos após a sua morte. O século XXI poderá ainda revelar algum enigma para os historiadores, pois para os filósofos pouco poderão descobrir essas informaçõesanterianas.


Bibliografia
Carreiro Tavares, José Bruno, Antero de Quental -  Subsídios para a sua Biografia, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1948, 2. Vol.
 Catroga Fernando, Conferência proferida no Liceu Antero de Quental, em 1991 Centenário da morte de Antero
Flores Moita, Francisco, “As mortes de Antero- “autópsia de um suicídio” 1991.Revista da História da Imprensa.
Guitton, Jean, Deus e a Ciência, Editorial Presença, Colecção Ciência Aberta, nº. 14s/d
Quental, Antero, Tendência gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Edição Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991
Melo, Lucia Costa, •Antero e a Filosofia do  meta-realismo, 2008 D. A.
Pagels, Heinz, Simetria Perfeita, Edição Gradiva, Colecção Ciência Aberta, nº.38, Lisboa, 1990 Capítulo final. A ciência na primeira pessoa.
Quental, Antero, Tendência gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Edição Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991
Penedos, Maria Manuel dos, A Guerra das Ciências, 2004.

Lúcia Simas  *

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