Diário dos Açores

Um Congresso notável, nos 500 anos de Gaspar Frutuoso

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Ia passando quase desapercebido, no meio de outras e valiosas iniciativas culturais realizadas na nossa cidade na semana passada, o Congresso subordinado ao título “Diferentes Olhares, Novos Debates”, comemorativo dos 500 anos do Doutor Gaspar Frutuoso, nascido em Ponta Delgada em 1522 e falecido na Ribeira Grande, onde foi durante anos Prior da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Estrela, em 1991. E no entanto tal Congresso, pela qualidade dos oradores nele participantes e pelo rigor científico das investigações pelos mesmos apresentadas, merece o devido destaque e honra sobremaneira a entidade organizadora, que não podia ser outra senão a Universidade dos Açores. Associaram-se em tal organização, a Presidência do Governo Regional, levando ao Palácio de Sant’Ana, uma das conferências, a Câmara Municipal da Ribeira Grande, onde o Congresso teve o seu encerramento; e ainda o Instituto Cultural de Ponta Delgada, bem como a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e o Museu Carlos Machado, ambas estas últimas entidades organizando exposições documentais, que ficam abertas ao público.  
Que cinco séculos depois ainda estejamos falando de Gaspar Frutuoso já é sinal inequívoco da importância do seu legado. Na verdade, ele fixou em texto as memórias dos tempos primordiais do povoamento dos Açores e juntou-lhes copiosa informação sobre o que se passou na Madeira, nas Canárias e até em Cabo Verde, surgindo por isso, muito merecidamente, bem à frente do seu tempo, ao identificar como uma certa unidade o conjunto de ilhas atlânticas, que hoje chamamos comumente como Macaronésia.
Gaspar Frutuoso começa por ser o cronista das nossas ilhas e assume na sua narrativa um lugar especial aquilo que se refere a São Miguel, que conhecia por contacto directo; mas sobre as outras ilhas abrangidas no conjunto do seu famoso livro “Saudades da Terra”, o Autor recolheu com rigor fontes de informação credíveis, num esforço minucioso de exame e apreciação da credibilidade dos documentos que lhe chegavam e que já prenunciam as preocupações científicas de historiador.
Os dados constantes do ingente trabalho de Gaspar Frutuoso alastram pelos diferentes ramos do saber e são anda hoje tidos em conta pelos estudiosos. Com certeiro ponto de vista, os responsáveis pela organização do Congresso e pela sua qualidade científica, juntaram nos organismos encarregados da mesma os três centros de investigação existentes na nossa Universidade - Centro de Estudos Humanísticos, Centro de Humanidades Nova/Uaç , Centro de Investigação Bio - e estes por sua vez os seus mais destacados elementos, de modo a cobrir os aspectos humanísticos (históricos, literários, etc.) e também de Vulcanologia, Geologia, Biologia, Geografia, sobre os quais a obra do Autor é pródiga em informações relevantes.
Nos três dias do Congresso foram passados em revista, em comunicações dignas disso e portanto à espera de urgente publicação, temas variados, que foram desde a Batalha de Alcácer Quibir até às erupções vulcânicas e às várias bacias hidrológicas existentes em São Miguel. Na impossibilidade de a cada uma delas fazer referência detalhada, bem como aos seus Autores e Autoras, remeto para a documentação disponível no site da Universidade dos Açores e para o livro do Congresso, que toda a Comunidade Científica fica aguardando com justificada expectativa.
Cabe-me, porém, realçar a dedicação exemplar das duas professoras que tomaram, durante as sessões do Congresso, as rédeas das comissões científica e organizadora do mesmo, Susana Goulart Costa e Susana Serpa Silva; bem como a presença de investigadores oriundos da Universidade Nova de Lisboa e das Universidades da Madeira e de Cabo Verde.
Como muito bem salientaram, nas suas doutas intervenções José Luís Brandão da Luz, Avelino Meneses , António Frias Martins e João Paulo Oliveira e Costa, além de muitos outros,  Gaspar Frutuoso foi um homem de cultura dividido entre os alvores das correntes racionalistas do Renascimento e a ortodoxia então dominante sobre o valor da Revelação e das Sagradas Escrituras. Fiquei mesmo com a impressão que lhe valeu os seus escritos só terem sido publicação tardia e de circulação afinal bem circunscrita, senão ainda ele teria ido parar às masmorras da Inquisição...
O facto de durante várias gerações o texto original manuscrito do Livro IV das Saudades da Terra ter ficado fechado no cofre da Família Praia e Monforte, criou toda uma lenda à volta de tal obra. Ouvi atribuir a razão de tanto secretismo ao facto de o Cronista identificar como cristãos novos alguns antepassados longínquos de Casa tão poderosa... Afinal, parece que tal não se verifica, caindo essa atitude em meras razões de poder financeiro. Em todo o caso, conseguir ler o texto manuscrito para tirar dele quaisquer conclusões exige um trabalho aturado e bons conhecimentos de paleografia, à mistura com grande paciência. Teve-a, no seu tempo, o Dr. João Bernardo de Oliveira Rodrigues e por isso pedi ao então Presidente da República, General Ramalho Eanes, que o condecorasse com o grau de Comendador da Ordem de Santiago da Espada, uma das antigas Ordens Militares reservada às mais gradas figuras do panorama cultural do nosso País.
Que não é qualquer um que consegue ler os autógrafos de Gaspar Frutuoso irá ser comprovado pelo livro que vai em breve publicar a Editora Letras Lavadas, por pessoal empenho de Ernesto Resendes, contendo a versão facsimilada dos mesmos - uma maneira virtuosa de assinalar os meio milénio do nascimento do Autor. Daqui a 500 anos alguém se lembrará de qualquer de nós?

   
* (Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico)

João Bosco Mota Amaral*

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